quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Filme: A Propósito de Llewyn Davis (2013)

A Propósito de Llewyn Davis é um filme que triunfa na abordagem simplista, na deslumbrante música e na interpretação excepcional de Oscar Isaac no papel principal. Os irmãos Coen têm outro êxito em mãos.

Nos anos 60, em Nova Iorque, Llewyn Davis (Oscar Isaac) procura a sua oportunidade na música folk. Todavia, tocando regularmente no bar Gaslight, Llewyn sente a sua carreira na música a fugir-lhe por entre os dedos e a vida pessoal a complicar-se consideravelmente. De casa em casa, de amigos em amigos, Llewyn vai sobrevivendo às custas da boa vontade de alguns. Certo dia, em contacto com o gato Ulysses, Llewyn pode finalmente ter a sua oportunidade.

A Propósito de Llewyn Davis transporta a audiência até aos anos 60 e, retirando o fulgor que é não raras vezes associado a esta época da história, mergulha-a numa envolvência baça em que abunda uma incógnita melancolia. A fotografia de Bruno Delbonnel, com os seus focos de luzes e de sombras e com a sua palete de cores amortecidas, acentua esta envolvência de forma sublime. A história de Llewyn Davis não é muito diferente destas sensações. Llewyn é alguém que emana melancolia, solidão e vontade parca. Tal como o ambiente que o rodeia, Llewyn parece alguém sem futuro, ou pelo menos alguém sem um futuro particularmente risonho. Com efeito, a jornada de Llewyn em A Propósito de Llewyn Davis é nada menos que desoladora para o seu espírito, ainda que os brilhantes momentos de humor negro de Joel e Ethan Coen como que reduzam no espectador esta ideia de desolação interna. Não restem dúvidas: Llewyn Davis não é uma personagem modelo e a sua história não é inspiradora.

A beleza de A Propósito de Llewyn Davis, pontuada por deslumbrantes momentos musicais, reside no efeito quase fantasista que a jornada de Llewyn parece tomar. A sua viagem para Chicago na companhia de dois desconhecidos – um dos quais fantástica e hilariantemente interpretado por John Goodman – é o momento fulcral em que o espectador se questiona sobre a veracidade de toda a história. Atravessando estradas vazias no meio de nenhures, esta sequência partilha as características de um sonho tido algures, já meio esquecido. Talvez Llewyn nunca faça efectivamente esta viagem; talvez toda a história seja o resultado da sua propensão criativa, reconstituída no seu processo de criação de música. O papel do gato Ulysses, orientado a caminhada e os desafios de Llewyn, parece dar força a esta teoria, quanto não seja pela forma sobrenatural e omnipresente como surge nos instantes em que Llewyn parece mais devastado com a sua falta de sorte. Assim como Ulysses, Llewyn parece ter mais do que uma vida.  

Joel e Ethan Coen, que também assinam o argumento, realizam A Propósito de Llewyn Davis com uma apropriada simplicidade, não obstante a narrativa aparentemente linear se revele intricada e profunda. Os seus planos em ruas ermas, em bares escuros e em corredores irrealmente apertados são demonstrações da sua natural capacidade para pegar no que é simples e criar algo distinto e notável. Oscar Isaac é extraordinário no papel de Llewyn Davis. Confinado a papeis menores, Oscar Isaac tem nesta profunda e enaltecedora interpretação a demonstração completa do seu talento e uma oportunidade para se candidatar a produções maiores. O seu Llewyn Davis, embebido em várias emoções, incapaz de compreender a música alheia, inspira diferentes relações. O elenco de suporte apresenta-se em bom plano, particularmente Carey Mulligan com a sua Jean indisposta, rude e preocupada.  


A música de A Propósito de Llewyn Davis é um elemento substancial da sua essência, outorgando um importante destaque à música folk. Dela sorve toda a narrativa. Na cena inicial do filme, enquanto Llewyn interpreta uma das suas músicas no bar Gaslight, um espectador assiste inteiramente absorvido, um cigarro nos seus lábios queimado quase até ao fim: analogia perfeita para o efeito que A Propósito de Llewyn Davis provoca na sua audiência.  

CLASSIFICAÇÃO: 4,5 em 5 estrelas


Trailer:

domingo, 15 de dezembro de 2013

Filme: Mandela: Longo Caminho Para a Liberdade (2013)

Mandela: Longo Caminho Para a Liberdade oferece uma visão maioritariamente ampla e a espaços emotiva da vida e da luta contra o apartheid de Nelson Mandela. Idris Elba é nada menos que fantástico na sua interpretação cônscia do eterno líder sul-africano.

Na África do Sul, no final dos anos 50, o regime do apartheid atinge proporções indecorosas. Nelson Mandela (Idris Elba) é um dos líderes do movimento revolucionário do ANC (Congresso Nacional Africano). Quando o movimento toma tácticas guerrilheiras em resposta a atitudes mais violentas do governo sul-africano, Mandela é capturado e condenado a uma pena de prisão perpétua. A sua mulher, Winnie Mandela (Naomie Harris) toma as rédeas do movimento guerrilheiro.  

Mandela: Longo Caminho Para a Liberdade, adaptado por William Nicholson da biografia Long Walk to Freedom do eterno presidente sul-africano, é um filme sem um equilíbrio definido, misturando momentos de beleza cinematográfica com momentos de relativa banalidade. Como um todo, todavia, este trabalho de Justin Chadwick encontra-se acima da média e, ancorado ao valor universal da mensagem de paz de Mandela, agarra com força a atenção e as expectativas do espectador, mesmo que no fim a recompensa emocional fique aquém daquilo que podia e devia ter sido alcançado, e que vinha a ser brilhantemente preparado na primeira metade do filme.

A primeira metade de Mandela: Longo Caminho Para a Liberdade, que se prolonga até ao momento do encarceramento de Nelson Mandela na prisão da Ilha Robben, não dá nenhum passo em falso, agregando uma narrativa fluida (desde a infância de Mandela) com uma montagem inteligente, transumanando Mandela com defeitos a fim de elevar o seu caminho ao estatuto de figura moral. Nesta parte do filme, o lado mais controverso de Mandela, e do seu papel no armamento da ANC durante a fase mais negra do apartheid, é tratado com cuidado e tacto, colocando-o ante momentos de aflição racial progressivamente graves que impactam o seu melhor discernimento. Embora Mandela tome o caminho da luta armada, a sua aversão ao mesmo é sempre observável; Mandela procura a paz e os instantes em que regressa às suas raízes, algures no meio da grande e bela savana, para visitar a sua mãe ou para se casar com Winnie, provam a sua vontade do tamanho do mundo de trazer paz e igualdade.

Quando Mandela é capturado e levado para a Ilha Robben, Mandela: Longo Caminho Para a Liberdade muda de ritmo. Abranda consideravelmente e perde o seu esplendor. Nelson Mandela, não obstante as enormes privações que padece no seu longo e injusto cativeiro, fica mais distante do espectador e a sua viagem moral torna-se mais imperceptível. A forma como Justin Chadwick trabalha esta parte da vida do eterno líder sul-africano provoca a inquietante ideia de que a transformação de Mandela durante o seu cativeiro se deve a algum amolecimento da sua vontade de revolta, como um animal enjaulado que se vê definhar as garras com a oscilação do pêndulo do tempo. Justin Chadwick contrasta seriamente esta transformação com a de Winnie Mandela, que, moldada por uma realidade de punição completamente diferente, parece impelida pelo simples ódio, quiçá dissonante com as suas verdadeiras motivações.

Os momentos que antecedem e se sucedem à libertação de Mandela carecem de alguma solenidade, dependendo demasiado das imagens de arquivo que Justin Chadwick reúne. No entanto, Justin Chadwick recupera nesta recta final algum do esplendor perdido e consegue conduzir um desfecho condigno com o carácter de Nelson Mandela: sentido, tranquilo e bonito; desfecho que carrega consigo uma inflexão emotiva extra pelo falecimento recente do eterno líder sul-africano. Justin Chadwick tem muito que agradecer a Idris Elba pela sua brilhante actuação. Embora exageradamente encorpado para a correcta caracterização de Mandela – problema particularmente mais presente nos anos mais avançados do líder –, Idris Elba faz uma encarnação de personalidade, voz e natureza verdadeiramente espantosa. É uma performance capaz de mudar o rumo da sua carreira. Naomie Harris também traz qualidade ao papel de Winnie, ainda que sobeje a ideia de que a sua personagem é subutilizada e que o seu lugar na narrativa é mal colocado.  


Os valores de produção deste filme estão a bom nível, da vibrante fotografia de Low Crawley – com fantásticos planos da savana sul-africana – ao apropriado guarda-roupa e à música bela e pulsante de Alex Heffes. Mandela: Longo Caminho Para a Liberdade pode não ser a mais perfeita interpretação cinematográfica de Nelson Mandela – o acto intermédio é frustrantemente carente –, mas é uma que vence na celebração a sua vida, das suas conquistas, e que deixa saudades do seu memorável e já eternizado espírito.    

CLASSIFICAÇÃO: 3,5 em 5 estrelas


Trailer:

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Filme: O Hobbit: A Desolação de Smaug (2013)

Superior ao seu antecessor, O Hobbit: A Desolação de Smaug é uma aventura carregada de imparável acção pontuada pela bem-vinda introdução de novas (velhas) personagens. Smaug rouba o espectáculo deste que está mais próximo daquilo que é esperado de algo com o rótulo de O Senhor dos Anéis

Após encontrar o Anel na caverna de Gollum e escapar na companhia de Gandalf (Ian McKellen), de Thorin (Richard Armitage) e dos Anões da maré de gnomos, Bilbo Baggins (Martin Freeman) entra na fase mais difícil da sua aventura através dos perigos de Mirkwood, da clandestinidade na Cidade do Lago e do encontro com Smaug, O Terrível (Benedict Cumberbatch), em Erebor. A ameaça espreita a cada passo e a missão da companhia para recuperar Erebor terá mais implicações na Terra-Média e no Mal que se reorganiza do que o hobbit e os anões imaginam.

Deixando para trás o ar mais folgado e divertido do primeiro capítulo da trilogia, O Hobbit: A Desolação de Smaug, o sempre muito importante capítulo intermédio, deixa bem claro desde os minutos iniciais que existe para ser levado mais a sério. Já não há espaço para canções de anões, nem para longas exposições que pouca consequência provam ter; o tom é mais negro e a urgência da missão de Thorin Escudo-de-Carvalho para recuperar o reino perdido de Erebor é mais convincente. Embora esta mudança de ritmo seja bem-vinda e resolva alguns dos problemas do primeiro capítulo, a mudança repentina pode causar inicialmente alguma estranheza e desconforto, sobretudo no encontro da companhia de Bilbo com o mutante Beorn. Ultrapassada esta primeira etapa, O Hobbit: A Desolação Smaug é daí por diante uma aventura imparável, com pouco espaço para respirar até à Montanha Solitária.     

Até Erebor, a companhia de Bilbo enfrenta reveses e encontros inopinados. Nesta fase da jornada, Peter Jackson toma mais liberdades criativas e introduz novas narrativas ao enredo de J.R.R. Tolkien. O primeiro capítulo já tinha mostrado a vontade de Peter Jackson em ligar a trilogia O Hobbit aos eventos da trilogia O Senhor dos Anéis. Essa vontade ganha mais força e dinâmica em O Hobbit: A Desolação de Smaug. Gandalf abandona a companhia para investigar Dol Guldur e desvendar a identidade do sinistro Necromante, enquanto a companhia de Bilbo é perseguida e atacada no seu caminho pelos emissários do Necromante liderados por Azog. Os eventos apresentam-se intricadamente interligados, atribuindo a tal urgência à missão de Thorin.

Os novos cenários são deslumbrantes. A Floresta de Mirkwood é estranha, misteriosa e sufocante, ganhando dimensão e extensão com o tratamento a três dimensões. As aranhas gigantes que habitam este espaço e que atacam a companhia provocam o primeiro grande momento de tensão do filme, revivendo aquela que Frodo encontrou em O Regresso do Rei no seu desafio com Shelob. Segue-se o Reino da Floresta liderado pelo elfo Thranduil e pelo seu filho Legolas. Este reino lembra aquele de Lothlórien, mas existe aqui uma aura negra que se espalha até aos seus habitantes e, em particular, até ao seu rei. Depois vem a Cidade do Lago e é provavelmente o melhor destes novos cenários, uma terra reminiscente de uma Veneza medieval, pobre e fúnebre, liderada por um tirano imbecil e ganancioso.

Se em O Hobbit: Uma Viagem Inesperada dava a ideia que a companhia de Bilbo nunca estava em verdadeiro perigo, passando por todos os obstáculos com relativa facilidade, essa sensação muda em A Desolação de Smaug. A noção de perigo está mais presente, aumentando o interesse do espectador pela missão de Thorin. A componente dramática é igualmente mais palpável, fortemente baseada nas personagens de Tauriel (criada exclusivamente para a adaptação cinematográfica) e Kili, cujos partilham uma improvável paixão, ainda que platónica nesta fase. A chegada da companhia a Erebor é outro momento em que o drama transparece. É impossível não sentir a emoção dos anões no regresso à sua casa-mãe. Mais do que a mudança no ritmo e no tom, são especialmente estes pequenos momentos que colocam O Hobbit: A Desolação de Smaug um patamar acima do seu antecessor. 

De todos, todavia, o grande momento, aquele que faz mais furor, pertence a Smaug, o dragão que fez de Erebor a sua casa. Smaug é um produto de design e efeitos especiais verdadeiramente impressionante; é a grande façanha desta produção, quiçá desta trilogia. É certamente o melhor dragão a sobressaltar o grande ecrã; é astuto, malicioso e traiçoeiro. Benedict Cumberbatch é tremendo a dar-lhe voz (e performance). Smaug rouba todas as cenas em que está presente; o seu diálogo com Bilbo é uma sequência intensa e notável, uma que, certamente difícil de conseguir, obtém de Martin Freeman a sua melhor prestação. Aliás, todo o elenco parece no topo do seu jogo quando Smaug entra em cena; Richard Armitage aprofunda a personalidade de Thorin, levantando no espectador questões sobre a hombridade do líder da companhia.

No plano técnico, O Hobbit: A Desolação de Smaug apresenta melhorias, mas alguns exageros e defeitos permanecem inalterados. Embora o CGI esteja mais elaborado e mesclado na magnífica fotografia, o seu uso excessivo, particularmente nas cenas envolvendo a incursão de Gandalf em Dol Guldur, retira fluidez, sobriedade e realismo à narrativa. A decisão de computorizar todas as estranhas criaturas não é afortunada; não se justifica a aplicação de CGI à maioria dos Orcs presentes ao longo do filme quando o método anterior e tradicional (de trajes e maquilhagens) funcionava tão optimamente. Este parecer ser o Pé de Aquiles de Peter Jackson e esta a sua adaptação da Terra-Média mais carregada de CGI. O realizador neozelandês abusa da boa vontade do espectador; os inúmeros fade-outs na parte inicial do filme, ainda que bem-intencionados, são um perfeito exemplo da sua cisma. Não obstante, com a sua câmara imparável e com os seus planos ilimitados, Peter Jackson produz cenas de acção enérgicas, vibrantes e deslumbrantes, nas quais se destacam a fuga em barris da companhia de Bilbo aos elfos e a insurreição contra Smaug no covil.     

As interpretações são boas e as novas personagens introduzem uma lufada de ar fresco. Evangeline Lilly justifica a inclusão de Tauriel com a fantástica criação de uma guerreira e rebelde elfa, tal como a justifica Orlando Bloom enquanto o regressado Legolas, agora mais arrogante e distante. Alguns dos anões têm oportunidade para se destacar, especialmente Kili de Aidan Turner. Ian McKellen não dispõe de muito tempo no ecrã, mas fascina em todas as suas cenas, mesmo que a produção à sua volta não se aproxime da qualidade da sua certamente difícil actuação. Nota ainda para a excelente banda sonora de Howard Shore, com novos temas e encantos, mesmo que a sua música não tenha a mesma utilização e manifestação que aquilo que propõe na versão em disco.

O Hobbit: A Desolação de Smaug acaba de forma súbita, em absoluto suspense, num ponto que deixará muita água na boca dos fãs, um ano de espera pelo último capítulo pela frente. Este segundo capítulo recupera efectivamente o passo e promete um final explosivo para a trilogia. Como um só, O Hobbit: A Desolação de Smaug não faz sentido; está dependente dos restantes para se legitimar. Como um meio, é um capítulo entusiasmante que reconquista a confiança daqueles que a tinham perdido, mais próximo da qualidade que O Senhor dos Anéis patenteou.     

CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas


Trailer:

    



quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Filme: Oldboy - Velho Amigo (2013)

Sem ritmo, com baixos níveis de suspense e com Josh Brolin em baixo de forma, Oldboy – Velho Amigo é um remake sofrível que não trabalha as suas personagens e que desperdiça e torna incredível a história de origem.

Joe Doucett (Josh Brolin) é um pai alcoólico e irresponsável que provoca conflitos e mal-estar por todo o lado. Certo dia, durante uma das suas intensas bebedeiras, Joe desaparece. Joe acorda num quarto de hotel que lhe serve de prisão durante 20 anos, ao fim do qual é inesperadamente libertado. Com sede de vingança, Joe procura o responsável pelo seu cativeiro e pela morte da sua mulher, ao mesmo tempo que procura saber o que aconteceu com a sua filha. Mas o jogo e as razões do seu captor são maiores e mais antigas do que Joe imagina.

Oldboy – Velho Amigo, um remake do homónimo filme sul-coreano de 2003 de Park Chan-wook, que por sua vez se inspira na homónima manga japonesa, pouco faz para justificar a sua existência. Privado de suspense e sem uma exploração decente e sustentada da sua personagem principal, Oldboy – Velho Amigo, quando não se lança numa frenética rotação kill-billiana, mais parece uma das ocasionais investigações da série Casos Arquivados, um case-of-the-week que dispensa introduções à linha narrativa principal e que recorre a apresentações sucintas de enquadramento e de circunstância. Joe surge como uma personagem oca e indefinida, pontuada por momentos fugazes que apontam para um indivíduo problemático, pretensioso e irresponsável, sem qualquer consequência para a conotação moral de que este filme de Spike Lee necessita para fazer razão de si mesmo.

Joe é encarcerado sem ter decorrido o tempo necessário para a satisfatória assimilação dos traços da sua personalidade e é libertado do seu cativeiro sem ter decorrido o tempo suficiente para mostrar e comprovar as suas certamente inúmeras privações, aflições e reflexões. Vinte anos parecem passar por Joe num ápice, sem que ele mesmo se pareça dar conta disso. A alegada redenção que completa neste período é de passagem ainda mais efémera, reduzida a algumas linhas em voice-over das cartas que vai escrevendo para a sua filha. Por via de uma montagem desnecessariamente apressada, onde não escapam alguns notórios erros de continuidade, Joe nunca justifica perante o espectador toda a panóplia de características que apresenta quando se encontra finalmente livre. Que Joe experimente um qualquer não visto surto de absolvição e de retaliação durante o seu cativeiro não é de todo inaceitável, mas que se transforme subitamente num herói vingativo com poderes especiais é um salto de fé maior do que a reza das pernas.

A história de Oldboy – Velho Amigo, que é praticamente fiel ao original, embora o novo setting, não está em causa, antes a maneira amorfa e sem ritmo como Spike Lee a recicla no grande ecrã, desperdiçando sucessivamente conceitos e oportunidades de aperfeiçoamento. Spike Lee desbarata de tal forma a história que a torna algo ridícula e incredível. Não ajuda a sua realização a toada melodramática das suas abordagens tentativamente sérias, envolta na música descontextualizada, ainda que bonita, de Roque Baños; nem as performances sofríveis de Josh Broslin e Sharlto Copley. Josh Broslin aparece perdido e espalhado ao comprido no seu registo, enquanto Sharlto Copley, na tentativa de criar uma personagem estranha e memorável, cria uma personagem absurda. Samuel L. Jackson é igual a Samuel L. Jackson nos papéis menos convencionais: algo interessante, mas sem espaço para mais.          

Oldboy – Velho Amigo oferece alguns bons momentos de acção consequentes da sede de vingança e do carácter de justiceiro implacável de Joe. No global, contudo, este remake é um filme sofrível que resulta menos muito menos inteligente do que se julga e se apresenta. Certamente não se fundamenta perante o seu causador.
  
CLASSIFICAÇÃO: 1,5 em 5 estrelas


Ttrailer:


segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Filme: A Vida de Adèle (2013)

A Vida de Adèle, do franco-tunisino Abdellatif Kechiche, é um extraordinário trabalho de exploração do carácter, da sexualidade e da transição da fase adolescente para a fase adulta, onde Adèle Exarchopoulos tem um desempenho memorável. Um dos filmes do ano. 

Adèle (Adèle Exarchopoulos), uma jovem estudante do liceu, começa a ter dúvidas sobre a sua sexualidade. Não querendo assumir aquilo que é, Adèle tenta manter as aparências, mas sem resultado. Um dia, Adèle conhece Emma (Léa Seydoux), uma artista plástica e gráfica com um misterioso cabelo azul, com quem inicia uma tórrida relação. A entrada de Adèle na vida adulta acarretará, todavia, problemas que Adèle não antecipa e que podem por em causa tudo aquilo que alcançou. 

Adaptado pelo realizador Abdellatif Kechiche do romance gráfico Le Bleu est une couleur chaude de Julie Maroh, A Vida de Adèle é um tour-de-force sobre o renascimento do Eu, onde a sexualidade, camada a camada, é decomposta na sua forma mais crua e primitiva para criar uma mensagem contundente sobre a escolha, ou incapacidade para ela. Neste olhar descomprometido, Adèle, que é introduzida ao espectador na recta final da sua adolescência, surge como um indivíduo tentativamente normal, à procura da normalidade e da maneira habitual de fazer as coisas. Começando a compreender que encarcera notórias diferenças em comparação com o seu grupo, Adèle ouve por alto as conversas das suas amigas sobre os rapazes do seu liceu e nada sente quando um deles mostra interesse por ela, interesse que chega a vias de facto para seu desconsolo e desconforto. Adèle percebe por fim que é diferente, mas, não sabendo como lidar com essa constatação, deprime-se e fecha-se sobre si mesma.  

Certa noite, Adèle deambula até um bar gay para testar o seu grau de integração. É nesse bar que Adèle volta a encontrar Emma, uma rapariga de cabelos azuis que lhe previamente chamara a atenção numa rua. Logo desde a primeira interlocução, Adèle e Emma entendem-se às mil maravilhas; Emma é o refúgio que Adèle precisa entre os dois mundos no qual tem um pé, mas nenhuma real presença. Adèle e Emma iniciam um romance tórrido que cresce para algo mais maduro e sólido. Adèle parece finalmente na expressão máxima da sua felicidade, sensação que Abdellatif Kechiche traduz excelsamente nos momentos que Adèle e Emma partilham num bonito e reservado jardim. O jardim podia perfeitamente ser o mundo dos sonhos de Adèle, porquanto ali tudo lhe parece possível. Todavia, Adèle rapidamente descobre que o seu novo mundo é tão igual ao seu anterior; os problemas são os mesmos e a conjugalidade homossexual enfrenta os mesmos desafios que qualquer outra relação.

Enquanto coming-of-age, A Vida de Adèle retrata sapientemente a viragem da vida adolescente para a vida adulta. Adèle, que se apresenta maioritariamente solitária, nunca consegue integrar-se completamente no meio adulto, nem tão-pouco no meio artístico e instruído de Emma onde os diálogos são cheios de interpretações ambíguas e intrincadas. Emma, por seu lado, não realiza o esforço para integrar Adèle neste meio, sugerindo até a Adèle que tente a escrita e abandone a educação de infância. Embora Adèle seja a musa para o trabalho de Emma, Emma nunca lhe dá o devido mérito, aceitando que Adèle se fica reduza a um inglório papel de dona de casa. Não obstante o relativo assumir da sua sexualidade, Adèle, que se sentira primeiramente isolada e prisioneira no liceu, volta a experimentar tais estados na companhia de Emma. Fica patente que o maior problema de Adèle nunca fora a sua sexualidade, mas a maneira como aparece desligada e desinteressada à frente das pessoas.    

Com o cabelo desgrenhado e o ar eternamente compenetrado, Adèle Exarchopoulos é perfeitamente genial no papel de Adèle. Este é um filme que se alimenta da sua performance e que se pinta com a sua frontalidade. Adèle carrega uma força emotiva rara no cinema, capaz de transmitir mil e uma sensações e pensamentos com mero recurso ao rosto e à gesticulação. É impressionante a forma como verdadeiramente enrubesce numa discussão, ou como as lágrimas e o ranho lhe descem com naturalidade num choro compulsivo. Poucos dirão que esta é mais actuação do que experimentação, ou que a força motriz por detrás da sua capacidade representativa seja meramente impulsiva: é-lo na realidade, provando-se dedicada e sentida. Adèle mostra-se confortável na sua pele e não faz passar mal-estar nas verdadeiramente explícitas cenas de sexo. Do outro lado, Léa Seydoux mostra-se bastante competente. Ainda que não brilhando tanto quanto Adèle, a prestação de Léa é forte e laudável, criando uma Emma com o seu encanto e charme, que se destaca muito para além do cabelo azul de saltar à vista.
   
Abdellatif Kechiche consegue um filme fenomenal e inspirado com A Vida de Adèle. A sua realização, embora a longa duração, nunca perde foco nem sentido das inúmeras mensagens que pretende reflectir (muitas mais do que uma única visualização permite descortinar), demorando o tempo que é necessário demorar para desenvolver camada a camada, fala a fala, as suas personagens e o rumo da sua narrativa. O tempo passa de forma imperceptível e, do nada, três horas decorrem como que num zás e Adèle transforma-se de uma jovem rapariga para uma jovem mulher. O mérito de Abdellatif Kechiche, mais do que na forma como a sua câmara acompanha Adèle ou como não se coíbe à crueza das cenas explícitas, reside na espontaneidade com que faz passar uma narrativa que, nas suas temáticas, é complexamente estratificada.   

A Vida de Adèle, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, é definitivamente um dos filmes do ano e um que ainda vai fazer correr muita tinta, tanto não seja pela maneira como termina a sua maratona e deixa em aberto a possibilidade de uma futura continuação.  

CLASSIFICAÇÃO: 5 em 5 estrelas


Trailer:

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Filme: The Hunger Games: Em Chamas (2013)

Não obstante alguma sensação de déjà vu, The Hunger Games: Em Chamas, comandado por Jennifer Lawrence, é a rara sequela que melhora sobre o original, explorando e aprofundando os seus temas e as suas mensagens.

Após a vitória nos 74os Jogos da Fome, Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence) e Peeta Mellark (Josh Hutcherson) procuram adaptar-se à condição de mentores, uma que os obriga a percorrer os distritos de Panem em tributo aos companheiros falecidos durante os Jogos. Durante a viagem, Katniss e Peeta tentam manter aparências a fim de controlar o sentimento de revolta contra o Capitólio que começa a ganhar força na população. Quando falham, Katniss e Peeta regressam à arena para os 75os Jogos da Fome, um evento especial em que a Colheita é feita a partir de antigos vencedores.

The Hunger Games: Em Chamas não palminha caminhos muito diferentes do seu antecessor – a espaços, parece deveras uma cópia em papel de carbono daquele que lhe dá origem -, mas a evolução favorável na mitologia e nas temáticas envolvidas consagra aquele por vezes raro upgrade numa sequela que cria um registo cinematográfico indiscutivelmente superior. Partindo de um argumento adaptado por Simon Beaufoy e Michael deBruyn (pseudónimo para Michael Arndt), Francis Lawrence agarra sem rodeios no já agradável produto de Gary Ross e, com expectativas acrescidas e sufocantes sobre si, introduz inovação e maturidade onde a narrativa a exige, alargando as dicotomias no mundo de Panem e alimentando as necessidades de sublevação que vão ganhando força nesta saga. Este Hunger Games já não se circunscreve apenas ao horroroso e sádico conceito dos Jogos ou da sua mortífera arena; na verdade, a presença deste recinto é já, por esta altura, um companheiro que chega tarde e desnecessariamente à festa, embora a sua existência não se revele descabida ou importuna.     

Com riscos maiores, Katniss, a Rapariga em Chamas, e Peeta são forçados a uma viagem da vitória por todos os pobres distritos de Panem para acalmar o espírito de perturbação que toma conta da população desde que Katniss se insurgiu contra as regras do Capitólio no final do primeiro capítulo da saga. O ambiente sombrio e frio que envolve esta viagem serve igualmente para criar desconforto no espectador, reforçando o contraste com o visualmente belo e opulente do Capitólio e dos sues relacionados. É nesta envolvência que Katniss começa a compreender que, alheio à sua vontade, representa o gatilho para uma poderosa arma: a insurreição. Todavia, sob a ameaça do Presidente Snow, Katniss recusa ser o rosto desta propaganda, tentando mostrar um rosto de disposta obediente à população dos doze distritos. Quando o esforço não resulta, Snow encontra forma de eliminar o mal pela raiz, forçando Katniss a regressar à arena com Peeta e antigos vencedores dos Jogos.

Este regresso à arena, embora mantendo o foco sobre o inabalável instinto de sobrevivência e entreajuda de Katniss, não deixa de dar a impressão de um intermezzo entre um acto superior e tematicamente expressivo. A forma como Francis Lawrence mantém aqui o espectador distante dos acontecimentos exteriores ao intrincado recinto, ao contrário do que Gary Ross fez no seu contributo inaugural, mostra a determinação do realizador em adiar os seus melhores trunfos para os capítulos conclusivos (sob a sua já anunciada direcção), mesmo que a sua escolha signifique um final algo repentino e confuso para este segundo capítulo. Enquanto The Hunger Games - Os Jogos da Fome é um filme com claro princípio, meio e fim, The Hunger Games: Em Chamas é um filme que se apresenta in medias res ao longo da sua duração. Quando isolado, pode perder significado.    

Não obstante, a realização de Francis Lawrence é superior à de Gary Ross, acercando-se melhor dos valores de produção. Francis Lawrence prima sobretudo na maneira como constrói a cada passo a ideia de que os riscos são maiores e que uma grande tempestade se avizinha, uma que mudará tudo em Panem. No campo da actuação, Jennifer Lawrence, agora galardoada, continua excepcional no papel de Katniss Everdeen, apresentando-se na mesma naturalidade e facilidade. É ela quem carrega o filme aos ombros e quem cria no espectador o elo afectivo mais forte, algo de preponderância considerável quando ainda não é claro quem é amigo ou inimigo neste meio. O elenco de suporte é seguro, com destaque para Elizabeth Banks enquanto Effie Trinket e Stanley Tucci enquanto Caesar Flickerman. Effie e Caesar são a ligação indispensável com o Capitólio e a demonstração subtil da mudança na consciência dos favorecidos. Os estreantes Philip Seymour Hoffman enquanto Plutarch Heavensbee, Sam Claflin enquanto Finnick Odair e Jena Malone enquanto Johanna Mason introduzem personagens interessantes com camadas ainda por explorar e desenvolver no próximo capítulo, onde lhes é devida maior expressão.

Mesmo que não seja um começo e um fim em si mesmo, The Hunger Games: Em Chamas foge à armadilha das sequelas e evolui os conceitos envolvidos para o ponto em que se torna obrigatório visualizar o final da saga, evento que, ao ritmo actual, promete surpreender, dar que falar e colocar a saga lado-a-lado com as melhores. Destino ao sucesso na bilheteira, esta sequela entusiasmará consideravelmente o espectador familiarizado com a literatura de Suzanne Collins e agradará bastante àquele que, não conhecendo de antemão os desenvolvimentos narrativos, se coloca às cegas à frente do grande ecrã.

CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas


Trailer:




sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Filme: O Quinto Poder (2013)

Embora com Benedict Cumberbatch em bom plano, O Quinto Poder falha em quase todas as linhas, incapaz de criar uma identidade própria e de sobreviver à mediocridade da direcção de Bill Condon.

Em 2010, uma nunca antes vista fuga de informação de arquivos classificados norte-americanos faz furor e tumulto pelo mundo inteiro. Publicados por alguns dos maiores jornais do mundo em parceria com o website Wikileaks, os mais polémicos relatos da guerra no Afeganistão provocam uma crise diplomática. Por detrás de toda controvérsia encontra-se Julian Assange (Benedict Cumberbatch), o fundador do Wikileaks, um homem com uma sede insaciável pela verdade. O ego de Assange, e a sua relação autoritária com os seus parceiros, e em particular com Daniel Domscheit-Berg (Daniel Brühl), pode por em causa todo o esforço realizado.

A melhor forma de começar a resenha de O Quinto Poder é pelo que consegue nos minutos finais: um momento de autoconsciência e auto-depreciação em que Assange, numa pretensa entrevista no seu exílio, comenta desdenhosamente a própria existência de O Quinto Poder. É um raro momento de inteligência e humildade que sugere uma tónica redentora deste projecto de Bill Condon, mas que funciona para acentuar e agravar os problemas de andamento, montagem e péssima exposição que antecedem esta espécie de defeituosa catarse moral. O Quinto Poder nunca arrebata o espectador dos seus pés, nem nunca o deixa descansar. Deixa-o pela grande parte num estado de desconforto e latência, bombardeando-o com uma narrativa em moldes psicadélicos, brusca e desprovida de foco, sob uma enervante banda sonora.               

Grande parte do problema de O Quinto Poder, adaptado por Josh Singer da biografia Inside WikiLeaks: My Time with Julian Assange and the World's Most Dangerous Website do próprio Daniel Domscheit-Berg e do livro WikiLeaks: Inside Julian Assange's War on Secrecy de David Leigh e Luke Harding, é a falta de percepção e escolha. São poucos os filmes que podem ficar num campo neutro; ainda menos os que o conseguem. O Quinto Poder não é de todo um deles. Querendo mostrar todas as perspectivas em jogo e não se atrevendo a se colocar do lado de nenhuma delas, O Quinto Poder acaba por pouco mostrar, por se perder no meio e por se reduzir à indesejável insignificância. Bill Condon não quer pintar Assange de heroísmo ou monstruosidade, a América de culpa ou desculpa. E como uma casa que não é pintada, O Quinto Poder apresenta-se frio, desconfortável e abandonado, como algo não totalmente concretizado.

A espaços, O Quinto Poder parece querer tirar uma A Rede Social da cartola, colocando Daniel ao lado de Assange da mesma forma que David Fincher colocou Eduardo Saverin ao lado de Mark Zuckerberg. Tal como em A Rede Social, a frutuosa relação entre os dois grandes pilares do respectivo website toma um caminho negro, com o fundador a prevalecer sobre o parceiro. Mas enquanto em A Rede Social a narrativa encontra-se exemplarmente estruturada e justificada, em O Quinto Poder a narrativa é convoluta, impaciente e pouco comprometida, em que o lado individual, essencial em A Rede Social, se encontra pobremente trabalhado, apresentando-se num estado quase embrionário.      

A direcção de Bill Condon é escassamente sofrível, tal como é a primeira metade do filme. Desde bem cedo, desmorona-se a ideia de que O Quinto Poder se transforme algures num bom filme. Efectivamente, nunca acontece, embora a segunda metade, se se sobreviver à atrocidade da primeira, mais focada e amansada, consiga dar meia volta e produzir algum verdadeiro interesse. O grosso da melhoria é atribuível a Benedict Cumberbatch, que, ainda que nunca tenha espaço para reflectir optimamente o carácter de Assange e da sua cruzada, rouba a atenção a cada segundo que surge no grande ecrã. É lamentável que a direcção à volta de Cumberbatch nunca se aproxime do seu empenho, da sua qualidade e da sua devoção; neste que deveria ser o ano da sua completa afirmação, Cumberbatch vê-se mergulhado num trabalho ingrato que pode provocar fracturas na sua carreira em ascensão. 


O restante elenco não está mal e oferece alguma entrega aos respectivos papéis. Daniel Brühl, depois de Rush – Duelo de Rivais, volta a estar em bom plano. A fotografia de Tobias Schliessler é interessante, bem como um ou outro aspecto da produção. O insucesso de O Quinto Poder é globalmente atribuível ao péssimo trabalho de Bill Condon, que após o seu serviço na malfadada saga Twilight há-de ter-se esquecido de como contar histórias sérias. Quando o principal tema em causa é a maior fuga e publicação de informação classificada da história, o tratamento cinematográfico merecia ser tão sensível quanto o tratamento dessas matérias polémicas.

CLASSIFICAÇÃO: 1,5 em 5 estrelas


Trailer:

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Filme: Carrie (2013)

Carrie é uma adaptação desinspirada, rígida e inconsequente do clássico conto de terror de Stephen King. Chloë Grace Moretz interpreta uma versão interessante de Carrie White, mas a sua actuação não é suficiente para disfarçar as inúmeras debilidades deste remake.

Carrie White (Chloë Grace Moretz) é uma adolescente com problemas de comunicação e de integração na escola. Em casa, Carrie tem uma relação muito difícil com Margaret (Julianne Moore), a sua mãe, uma mulher desequilibrada com várias obsessões religiosas. Um dia, após uma aula de ginástica, Carrie tem a sua primeira menstruação, a que reage violenta e assustadoramente, tornando-se alvo de humilhação pelos seus colegas. Com o aproximar do baile de finalistas, Carrie sente-se progressivamente alheada do seu ambiente, enquanto dentro dela começam a crescer um conjunto de poderes extraordinários.

À terceira representação da história homónima de Stephen King, Carrie falha em criar algo verdadeiramente memorável. Alegadamente mais fiel ao trabalho de King, a narrativa apresenta-se rígida e pouco disposta a explorar as importantes questões que levanta. Destas, a temática do bullying é a que salta mais vista e também a que tem menor aderência moral, portando-se exclusivamente como um acelerador de reacções, para a reacção explosiva e destrutiva de Carrie. O fanatismo religioso é outra temática a que Carrie faz ténue alusão, sem origem ou fim claro, na forma do tratamento tortuoso e castrador que Carrie recebe da sua desequilibrada e pouco, se não nada, compreensiva mãe. Não obstante o cariz de terror e do sobrenatural que move esta acção cinematográfica, Carrie perde um importante nível de suspense psicológico por se enviesar das temáticas atrás referidas.

Este Carrie procura ser uma evolução técnica dos seus antecessores. Todavia, o último acto da história enche-se de efeitos especiais e de CGI que se apresentam inacabados. Quando um filme como este trabalha tanto para o seu último acto, menosprezando temáticas pontuais que vão sobrevindo, e quando este último acto fica aquém das expectativas, técnica ou narrativamente, sobeja a ideia de que todo o investimento, quer da produção quer do espectador, foi largamente desperdiçado. É uma constatação infeliz, porquanto Carrie até vinha a apresentar até este derradeiro ponto algum potencial – em matéria (leia-se narrativa) bruta – para se concluir noutro desfecho, com cabeça e sentido.

O elenco faz um bom trabalho para manter a relevância das suas personagens, particularmente o elenco mais jovem que tem que trabalhar com material já demasiado mastigado e convencional. Chloë Grace Moretz é uma Carrie agradável, balanceando com qualidade o lado frágil e tímido, de linguagem corporal fechada, com o lado vingativo, poderoso e destruidor. Julianne Moore, enquanto a mãe fanática e possessiva de Carrie, caminha sempre uma linha muito ténue entre o medo e o ódio que a sua Margaret suscita e a comédia que o seu fanatismo inadvertidamente origina.

Kimberly Peirce não faz nada de extraordinário com esta nova incarnação de Carrie. A sua direcção é demasiado convencional para justificar a nova abordagem ao trabalho de Stephen King, mesmo que os valores de produção, com a óbvia excepção do CGI, sejam razoavelmente competentes. No campo do horror, Carrie pouco ou nada assusta e nada na direcção de Kimberly Peirce dá alguma vez ideia de ter pretensões do filme de terror com que se classifica, ou do conto clássico de terror em que se (des)inspira. Não é nenhum exagero concluir que este Carrie se encontra fadado à inevitável deslembrança.   

CLASSIFICAÇÃO: 2 em 5 estrelas


Trailer:   
                  

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Filme: Capitão Phillips (2013)

Capitão Phillips transporta o espectador para o noticiado assalto pirata somali em 2009 com suspense, intensidade e respeito pela condição social. Tom Hanks mostra-se de regresso à plenitude do seu talento.

Richard Phillips (Tom Hanks) é capitão do porta-contentores norte-americano Maersk Alabama, que se encontra numa viagem até ao Corno de África para entregar mercadoria e ajuda humanitária. Ao largo da Somália, o Maersk Alabama é alvo de uma abordagem por um resoluto grupo de piratas, liderado por Abduwali Muse (Barkhad Abdi), uma que só poderá ser resolvida com a astúcia de Phillips e com os recursos da marinha norte-americana.

Em 2009, a captura do porta-contentares norte-americano Maersk Alabama por piratas somalis fez cabeçalho pelos meios informativos de todo o mundo. A operação de resgate da tripulação do Maersk Alabama e do seu capitão, tomado como refém, foi acompanhada à distância com a ambiguidade que uma atípica situação noticiosa como esta significa, com inevitáveis informações e contra-informações. Capitão Phillips, baseado no relato de eventos A Captain's Duty: Somali Pirates, Navy SEALs, and Dangerous Days at Sea escrito pelo próprio capitão do Maersk Alabama, faculta uma excepcional e detalhada visão por dentro dos provados acontecimentos, colocando o espectador em sufoco e em suspense durante o processo de intensa rotação.

O primeiro momento de tentativa de abordagem pelos piratas da Somália é assustadoramente intenso; o segundo, com sucesso, é de cortar a respiração. Todavia, a forma como Phillips parece tranquilo e preparado ante a iminente ameaça, com todos os seus ardis e sacrifícios para manter a sua tripulação a salvo, enche o espectador com o calor da serenidade. Phillips parece capaz de manter as rédeas da situação; durante a primeira metade, Phillips é deveras capaz de resolver o problema sem males maiores. Mas há, do outro lado, um grupo de piratas desesperado, perdido, sem nada a perder numa vida pobre dada à contínua miséria; um grupo que, recusando-se a reconhecer a situação precária em que se colocou, procura extrair o maior proveito a todo o custo. Capitão Phillips defende tanto a bravura do capitão do Maersk Alabama quanto a inocência relativa do grupo pirata, não vedando os olhos às disparidades sociais no Corno de África que resultaram neste imbróglio.  

A intervenção pela marinha norte-americana na operação de resgate de Phillips, por mais que verídica, ostenta um lado de costumeira vanglória americana que parece inevitavelmente exagerado e pode causar algum aborrecimento. Não obstante, o realizador Paul Greengrass mantém a exuberância cinematográfica suficiente para se absolver do excessivo americanismo, tornando o aparatoso exercício militar num acessório para a medição de forças entre Phillips e Muse. Aqui, as barreiras linguísticas (os diálogos entre o grupo pirata nem sempre são alvo de tradução) desempenham um papel importante no estorvo da resolução pacífica e na desorientação global do espectador.

Capitão Phillips pontua-se pela velocidade de cruzeiro, mas nunca perde sentido da alta rotação. Paul Greengrass, a partir do momento em que o grupo pirata surge, investe numa direcção frenética, desorientadora e, por vezes, claustrofóbica, aplicando uma fotografia discreta, uma montagem metódica e uma vital banda sonora pulsante com tons étnicos e culturais. Paul Greengrass consegue de Tom Hanks, cujo não parece alguma vez mal sobre águas, uma actuação potente e revitalizante; o mérito reparte-se com a qualidade interpretativa que obtém do desconhecido elenco somali, particularmente do estreante Barkhad Abdi enquanto Abduwali Muse, um papel que poderia facilmente cair na ostracização.    


Capitão Phillips, na linha de 00:30 – A Hora Negra, é outra fantástica interpretação cinematográfica de eventos reais onde a intervenção militar toma um lugar acessório e a intervenção pessoal um lugar de relevo. Se com 00:30 – A Hora Negra Jessica Chastain reuniu louvores à sua volta, é previsível que Tom Hanks alcance semelhante nível de consagração. Capitão Phillips, à sua maneira, é pelo menos tão surpreendente.    

CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas


Trailer:

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Filme: Raptadas (2013)

Raptadas é um thriller intenso, sóbrio e absorvente, pautado por boas interpretações e uma boa direcção de Denis Villeneuve. Hugh Jackman segura a narrativa pelas rédeas e dá outra demonstração das suas capacidades.

Na Pensilvânia, no Dia de Acção de Graças, as famílias vizinhas Dover e Birch reúnem-se para celebrar a festividade. Anna Dover e Joy Birch, as duas crianças de cada família, saem de casa para brincar na rua. Anna e Joy não voltam. A polícia é chamada ao local e o detective Loki (Jake Gyllenhaal) toma conta do caso. Com o alongar da investigação sem resultados concretos, Keller Dover (Hugh Jackman) e Franklin Birch (Terrence Howard) decidem agir pelos seus próprios meios sobre aquele que consideram responsável pelo rapto das duas crianças.

Raptadas demora o necessário para desenrolar as potencialidades da sua narrativa, usando a por vezes rara consciência e soberania sobre o tempo para construir um apropriado cenário sorumbático e tristonho. Com os segredos da narrativa guardados a sete chaves pela maior parte do tempo, Raptadas coloca o espectador numa investigação paralela à que se desenrola paulatinamente no grande ecrã. Se o detective Loki tem as suas pistas e suspeitas sobre o desaparecimento de Anna e Joy, o espectador, que dispõe de uma clarividência superior, poderá ter uma visão inteiramente distinta. O triunfo de Raptadas, além do sorumbático tom construído, reside na forma como questiona e faz questionar e mantém a audiência num palpitante jogo de gato e rato até à revelação final.

O tom religioso que supervisiona o filme desde a primeira linha prenuncia uma relação moral, e não defrauda. As diversas decisões tomadas pelos intervenientes da narrativa manifestam um desenlace amoral como resultado da decisão imoral do rapto das duas crianças. Em particular, a captura e consequente tortura por parte de Keller Dover do presumível raptor caracteriza magnificamente a dose incontrolável de desespero e incerteza resultante da primeira imoralidade; demonstra também a ténue limítrofe a que um pai se circunscreve para recuperar a sua filha. A intenção de Raptadas não é colocar o espectador do lado de Keller, nem contra ele; é meramente coadunar-se com a sua essência humana. 

Raptadas perde algumas engrenagens à entrada do último acto e transparece a ideia de que o final poderá empalidecer em comparação com o que veio anteriormente. Efectivamente, alguma da sobriedade esgota-se. As até então ponderadas vias de investigação – à moda antiga – são abandonadas e o caso resolve-se por intervenção externa com o reaparecimento súbito e inexplicado de uma das crianças. Não invalida a investigação que vinha sendo feita, por Loki, Keller ou pelo espectador, mas não lhe permite uma conclusão com clímace.

O canadiano Denis Villeneuve faz um bom trabalho atrás das câmaras, apresentando uma realização segura e instruída. A ambiência que cria, com a fotografia turva (a chuva que cai é muita), a música ora tensa ora soturna e a montagem certeira, absorve o espectador e envolve-o na insegurança que também envolve as suas personagens. Denis Villeneuve obtém dos seus actores interpretações fortes. Hugh Jackman apresenta-se em grande nível e comanda o filme; intenso, impaciente e ameaçador, Keller Dover é uma vítima perpetradora que inflige mais medo no espectador que o reprovável acto que é premissa para esta história. Jake Gyllenhaal, sem ombrear com Hugh Jackman, apresenta-se em bom plano, bem como o restante elenco.  

Raptadas é um dos melhores thrillers dos últimos meses. É um thriller que não se preocupa em mostrar o resultado, mas sim o processo para lá chegar, tomando pelo caminho as providências necessárias para manter a audiência agarrada à mesma esperança que move as suas personagens, não obstante a envolvência tristonha que prenuncia um final menos agradável.

CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas


Trailer: 


        

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Filme: Gravidade (2013)


A viagem ao Espaço de Gravidade é uma experiência fabulosa e deslumbrante que absorve e impressiona. Ímpar na ambição e na execução, pode muito bem ser a obra de referência de Alfonso Cuarón.

A missão espacial STS-157 encontra-se na recta final dos seus trabalhos de manutenção ao Telescópio Hubble. A STS-157 é a primeira viagem ao Espaço da estreante Dra. Ryan Stone (Sandra Bullock) e a última do veterano Matt Kowalski (George Clooney). Prestes a acabar o seu trabalho e a regressar a casa, a tripulação vê-se no meio de uma tempestade de atritos de satélites abatidos que arrisca a sobrevivência de toda a Missão.

Gravidade é uma experiência absorvente sem paralelo. Da primeira icónica cena crescente de um planeta Terra silencioso e tranquilo a uma última que é semelhante nos apanágios, embora numa índole diferente, Gravidade faz uso do seu poder gravitacional visual para manter a audiência suspensa aos alucinantes acontecimentos. O nível de detalhe é tão imenso e distinto que o tamanho da tela não parece capaz de conter toda a energia de uma câmara vigorosa e omnipresente. Gravidade, e não só por trâmite de uma aplicação a três dimensões admirável, extravasa as fronteiras da tela e puxa o espectador para os seus eventos. Muita desta sensação resulta da forma como Alfonso Cuarón, repleto de magia na sua execução, dá a ideia de que subiu ele próprio ao Espaço para filmar o seu ambicioso projecto. A física, mesmo que não infinitamente perfeita, apresenta-se criteriosamente cumprida; Alfonso Cuarón entrega aquilo que promete na premissa da sua história (obediência total à ausência de oxigénio, de pressão de ar e de som no Espaço).

A precisão e a clareza visual da Terra, do Espaço e das plataformas espaciais são impressionantes. Aliadas a uma banda sonora experimental e docemente desconcertante, Gravidade produz momentos de ansiedade capazes de fazer suster a respiração. Curiosamente, num meio tão vasto quanto aquele onde os tripulantes da Missão STS-157 se encontram, a impressão que ressalta é uma de imensa claustrofobia. O tratamento psicológico de que estes tripulantes são alvo desperta desconforto e preocupação. Basta atentar à sua respiração ofegante e esforçada para depreender o seu estado de espírito alarmado e desnorteado. No meio do atordoamento visual e sonoro, Gravidade encontra espaço para desenvolver o lado sensível destas personagens, em particular o da Dra. Ryan Stone, em quem deposita a esperança de uma ligação emotiva com a audiência – ligação que funciona impecavelmente e permite desculpar alguns ociosos automatismos.

A narrativa de Gravidade é simples e precisa, não cobiçando interpretações morais ou facciosas. É a mera história de uma tripulação em missão espacial na órbita da Terra que sofre uma terrível contrariedade e faz o necessário para sobreviver. Se Gravidade apresenta alguma notória falha é nesta natureza tão simplista que, sem outros atributos ou instrumentos de narrativa, vive de uma expressividade excessiva da Lei de Murphy. Todavia, numa experiência tão arrebatadora como esta, a narrativa é menos relevante e o veículo visual mais representativo. Nesta particularidade, Gravidade suplanta qualquer expectativa e estabelece um novo sustentáculo de comparabilidade. O espectador sai desta experiência assombrado e estonteado como se, tendo acompanhado a subida e a estada de Alfonso Cuarón no Espaço, tivesse abruptamente caído na atmosfera terrestre (e, neste caso, na apercepção cinematográfica do acontecimento).

Não obstante o peso visual, Sandra Bullock tem a importante tarefa de tornar a Dra. Ryan Stone apelativa e relacionável. Bullock consegue-o com relativo pouco esforço, ressalvando as fragilidades emocionais da sua personagem no meio do caos espacial. George Clooney não tem muito tempo de ecrã, nem nunca se lhe exige demasiado, mas marca cada cena com o seu discursar brando e reconfortante. A fotografia de Emmanuel Lubezki é globalmente brilhante e inclui momentos de verdadeira sublimidade. O uso da capacidade de aprofundamento espacial do 3D é raramente tão consistente e absorvente como este. Alfonso Cuarón tem possivelmente em Gravidade o seu melhor trabalho; é certamente o seu melhor trabalho visual. O tempo dirá da capacidade de permanência de Gravidade, mas este pode muito bem ser um dos melhores filmes espaciais, senão o melhor. É, incontornavelmente, o mais fidedigno, o mais extraordinário e o mais próximo que cada um pode almejar ficar da experiência extraterrena.   

CLASSIFICAÇÃO: 4,5 em 5 estrelas


Trailer:

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Filme: Rush - Duelo de Rivais (2013)

Rush – Duelo de Rivais, alinhado na força motora de um argumento de alta cilindragem, recria no grande ecrã a intensa rivalidade entre Niki Lauda e James Hunt com dedicação e compreensibilidade, destinado a fãs e a não-fãs.

Niki Lauda (Daniel Brühl) e James Hunt (Chris Hemsworth) são rivais desde o início da sua carreira, no palco fora da ribalta da Fórmula 3. Lauda e Hunt chegam eventualmente ao grande palco da Fórmula 1 e a sua rivalidade atinge popularidade mundial. Na época de 1976, a discussão pelo título de campeão atinge a maior ferocidade entre os dois. No entanto, Lauda sofre um terrível acidente no Grande Prémio da Alemanha que pode colocar um ponto final na disputa. 

A rivalidade na Fórmula 1 entre os pilotos Niki Lauda e James Hunt marcou uma era do desporto motorizado. O realizador Ron Howard transporta para o grande ecrã a intensidade rival entre os dois pilotos com toda a exuberância visual apoiada na energia automobilística. Servindo-se apropriadamente de um argumento equilibrado de Peter Morgan, Ron Howard começa por recuar na famigerada história, apresentando ao espectador a raiz da rivalidade no meio menor e mais obscuro da Fórmula 3, onde Lauda e Hunt se cruzam pela primeira vez, Lauda como um indivíduo sisudo e compenetrado e Hunt como um indivíduo imaturo e mimado. Embora as quase antagónicas diferenças de personalidade, ambos os novatos pilotos partilham uma imensa paixão pela velocidade e um conflito de vontades com as respectivas famílias. Hunt e Lauda, após um primeiro embate que os coloca de sobreaviso sobre as potencialidades do outro, seguem caminhos separados e dificuldades distintas. Lauda chega à Fórmula 1 graças ao seu conhecimento de mecânica e à seriedade com que encara o seu trabalho, enquanto Hunt chega ao campeonato de primeira linha com patrocínio interno e convicção no talento bruto.

No caminho para o topo e para a incontornável época de 1976, Ron Howard refreia-se do impulso de acção e trabalha cuidadosamente o lado pessoal e privado de cada um dos pilotos, desvendando o lado singelamente humano de cada lenda. Lauda mostra-se alguém com dificuldade de relacionamento, alguém que encara melhor uma corrida perigosa do que uma prova de afecto e amizade. Quando Marlene Knaus se cruza no seu caminho, Lauda enfrenta provavelmente o maior desafio da sua vida; nunca se transforma verdadeiramente no indivíduo carinhoso, para Marlene ou para o espectador, mas transforma-se aos poucos e poucos na alma e no coração da história. Hunt, por outro lado, é desde o princípio alguém sem barreiras relacionais, carismático e galanteador, com quem todos gostam de estar, mas que poucos reconhecem valor. Curiosamente, é nos momentos em que Lauda e Hunt interagem que os problemas de cada um parecem minimizados, e quando competem que são completamente superados. A rivalidade não é meramente competitiva: serve para dar força e propósito para a vida pessoal.

O acidente de Lauda na perigosa pista de Nürburgring na Alemanha é um momento de enorme consequência para o filme, momento em que Rush – Duelo de Rivais se transforma em algo especial. Nos momentos sequentes, incluindo a impressionante recuperação de Lauda, Ron Howard, apoiado em bons valores de produção dos quais se destacam a música vibrante e emotiva de Hans Zimmer e a fotografia contrabalançada de Anthony Dod Mantle, cria uma experiência intensa e fascinante ao som fremente dos motores e ao batuque cardíaco das emoções em jogo. O desfecho da época de 1976 não é nenhuma surpresa, mas Ron Howard estabelece a ambiência necessária para criar a ilusão no espectador de que é possível torcer por outro desenlace; afinal, este é um filme também construído, ou mesmo essencialmente construído, para não seguidores da Fórmula 1.

Chris Hemsworth apresenta-se no melhor papel da sua carreira. O lado playboy e despreocupado de James Hunt assenta-lhe que nem uma luva, mas Hemsworth mantêm-se moderado e dá mais atenção ao lado emocional e o intimamente frágil de Hunt. É, todavia, em Daniel Brühl que se descobre a melhor representação. O seu Lauda tem várias e tão distintas facetas e Brühl trata cada uma com a mesma importância e pormenor. A jornada de Lauda de um indivíduo distante e pouco relacionável para um Lauda heróico e sensível é impressionante, mas é o seu trabalho a partir do acidente em Nürburgring que é verdadeiramente notável. Aqui, Brühl prende a atenção do espectador, choca-o com a crueza das feridas de Lauda e conquista o seu bem-querer até ao final.


Rush – Duelo de Rivais é ainda pontuado por momentos de humor na forma de inteligentes diálogos. É o melhor filme de Ron Howard desde Frost/Nixon. É um filme pronto para agradar fãs de Fórmula 1 e aqueles que, não acompanhando ou se interessando pelo desporto, procuram uma boa história de rivalidade, perseverança e heroicidade; uma que acontece ser real.   

CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas


Trailer: