sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Filme: Boyhood – Momentos de uma Vida (2014)

Meticulosamente realizado durante um período de doze anos pela incrível dedicação de Richard Linklater, Boyhood – Momentos de uma Vida é um coming-of-age como nunca visto. Um dos filmes do ano.

Mason Evans Jr. (Ellar Coltrane) e a sua irmã Samantha (Lorelei Linklater) vivem com a sua mãe Olivia (Patricia Arquette) no Texas. O pai, Mason Sr. (Ethan Hawke), separado de Olivia, vive e trabalha no Alasca. Sempre à procura do melhor para os seus filhos e para si mesma, Olivia anda de cidade em cidade, de trabalho em trabalho e até de casamento em casamento enquanto Mason Jr. e Samantha, sempre com um contacto próximo do seu pai, aprendem, crescem e tomam decisões.

O compromisso de Richard Linklater com uma produção de nada menos do que doze anos é notável. Por si só, este facto é suficiente para encher Boyhood – Momentos de uma Vida de obrigatoriedade de visualização. Afinal, o espectador não está meramente a acompanhar uma cópia dos vários anos por que a narrativa passa, reconstituídos por valores de produção precisos e louváveis; está literalmente a visualizá-los tal como eram, com os seus estilos, as suas modas, os seus pensamentos, uma janela para o passado raramente tão fidedigna, pois é ela própria parte desse tempo. Para alguém próximo da geração de Mason Evans Jr., o efeito é ainda mais avassalador. As experiências por que Mason passa, os jogos com que se entretém, as roupas que veste e até mesmo o lançamento mundial de um capítulo de Harry Potter, em livro, extravasam a fronteira cinematográfica para trazer à tona verdadeiras memórias.  

A incontornável beleza de Boyhood – Momentos de uma Vida não se fica, todavia, pelo período da sua produção. A narrativa que Richard Linklater desenvolveu e adaptou às circunstâncias do seu elenco e da sociedade em constante mudança é por si só meritória e digna das mais sinceras reflexões sociais no cinema. Nunca se viu nada assim. A história de Boyhood – Momentos de uma Vida é tão terra-a-terra, tão próxima das nossas próprias vivências e experiências, dos momentos bons e dos momentos maus. É impressionante a quantidade de pessoas com que alguém contacta num período de doze anos, que entram e saem de uma vida, essenciais a dado momento e completamente esquecidas noutro; no caso particular de um jovem na fase ascendente da sua adolescência, o efeito é ainda mais destroçador. Entristece e reconforta ao mesmo tempo. Tudo muda, nada é constante. A vida é isto mesmo. Momentos.

Ellar Coltrane pode ter demorado doze anos para ter a sua grande estreia – não contabilizando a participação fugaz em Geração Fast Food (também de Richard Linklater) e em três outras pequenas produções –, mas fá-la em grande. A forma como Manson Jr. literalmente cresce diante dos nossos olhos – a montagem de Sandra Adair executa a transição de planos (e de idades) de forma brilhante – torna a sua personagem única. Ellar Coltrane é provavelmente a revelação do ano. Talvez ninguém tenha evoluído tanto no cinema diante dos nossos olhos como o jovem actor; a sua capacidade e a sua qualidade de representação evoluem e amadurecem do início ao fim do filme, conforme também Ellar Coltrane cresce e amadurece. Importante ainda destacar as dedicações de Ethan Hawke e de Patricia Arquette, a última em particular pela personagem fidedigna que interpreta, em papéis soltos com (certamente) muitas oportunidades de improvisação. E ainda a de Lorelei Linklater, filha do realizador, no papel da irmã de Manson Jr. 


Richard Linklater pode muito perfeitamente ter em mãos o filme da sua carreira. Qualquer galardão que esteja no seu caminho será perfeitamente justificado, como o será para o próprio filme, realizado de forma independente e sem compromissos, com risco e coragem. Boyhood – Momentos de uma Vida mostra que a cega dedicação à arte cinematográfica não está perdida. Existe, continua a ser nutrida e produz resultados assombrosos. No caso de Boyhood – Momentos de uma Vida, prova-nos que uma história concretizada na medida e no tempo certos é potencialmente a mais cabal e a mais próxima do espectador e das suas vivências.

CLASSIFICAÇÃO: 5 em 5 estrelas


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sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Filme: The Hunger Games: A Revolta – Parte 1 (2014)

Embora continue a ser um mostruário predilecto para o talento de Jennifer Lawrence, eleve o tom político e lance adequadamente os dados para a última visita a Panem, The Hunger Games: A Revolta – Parte 1 não escapa à sensação de não-evento de uma narrativa desnecessariamente partida em dois.

Após os eventos dos últimos Jogos da Fome, que Katniss (Jennifer Lawrence) terminou de forma abrupta com um disparo certeiro do seu arco, o tributo do Distrito 12 encontra-se no afinal vivo e de pé Distrito 13 sob a guarida e as ordens da Presidente Coin (Julianne Moore). A revolta está mais perto do que nunca, mas há ainda um trabalho de persuadimento a fazer aos restantes distritos. Símbolo encarnado do Mimo-Gaio, Katniss torna-se no rosto da campanha pela revolta. Do lado do Capitólio, Peeta (Josh Hutcherson) é a voz do Presidente Snow (Donald Sutherland) e da sua política de repressão.

Considerando o historial dos congéneres – em género e em público-alvo – Harry Potter e Twilight, a decisão de dividir o terceiro e último capítulo da saga de Suzanne Collins em dois filmes dificilmente se revelaria uma escolha artisticamente justificada. The Hunger Games: A Revolta – Parte 1 é um filme a dois tempos, a dois ritmos e mesmo a duas narrativas para uma história a duas metades, resultando quase invariavelmente numa sensação de um não-acontecimento. Durante cerca de duas horas, numa ambiência adequadamente sombria e contida, Francis Lawrence cria quase um jogo de gato e rato entre o evento e o não-evento, entre a iminente revolta e a delongadora propaganda política. A importância visual e moral do Mimo-Gaio personificado por Katniss Everdeen para a instigação da revolução parece efectivamente fundamentada, mas a resposta quase estritamente propagandista do Capitólio não parece coerente para um órgão soberano que nunca hesitou em antagonizar jovens numa arena até à morte.

O tom político em The Hunger Games: A Revolta – Parte 1 é maior do que nunca. Se por um lado o Presidente Snow, do Capitólio, é alguém versado na política e nos seus mecanismos, a Presidente Coin apresenta amadorismo e dificuldade em converter a sua posição de poder numa revolta forte e vitoriosa. Snow, compreendendo a limitação da sua adversária e o poder do Mimo-Gaio, dirige o seu ataque à principal ameaça ao seu poder e estado das coisas: Katniss. Terrivelmente fragilizada e perturbada pelos dois Jogos da Fome, Snow desfere um golpe terrível no espírito de Katniss com a conversão de Peeta, capturado nos acontecimentos finais de The Hunger Games: Em Chamas, à vida e ao estilo do Capitólio. O efeito é devastador para Katniss. Provavelmente inconsciente para o fenómeno, é usada como um peão no jogo de xadrez que o Capitólio e o Distrito 13 disputam lentamente. Se por um lado Katniss apela de forma improvisada à insurreição directamente de um campo de batalha em chamas, Peeta apela à paz e ao fim do conflito de forma calculista numa sala tranquila e acolhedora, espicaçado pelo sempre promotor Caesar Flickerman. Durante esta Parte 1 do capítulo final, a revolta amiúde anunciada reduz-se quase singularmente a esta troca de propagandas.

O último acto introduz por fim uma demonstração de força das duas fracções do conflito, ainda que pequena e visualmente restringida. Sem a arena e com o constrangimento de uma primeira metade de uma narrativa, Francis Lawrence aposta todos os seus trunfos neste acto. Um bombardeamento ao Distrito 13 é quiçá a melhor sequência que Francis Lawrence constrói até ao momento na saga, colocando o espectador quase em pânico durante o desenrolar do acontecimento, sequência que parece realizar com algum alívio. Francis Lawrence é um realizador radiante por poder contar com Jennifer Lawrence. Num filme que é mais contemplativo do que outra coisa e em que não é possível desconstruir mais as personagens para além daquilo que a audiência já conhece, Jennifer Lawrence consegue trazer elementos novos a Katniss. A sua actuação apenas é suficiente para manter o espectador focado no grande ecrã, mesmo que verdadeiramente não esteja a acontecer muita coisa. The Hunger Games é tanto a muleta para o estrelato de Jennifer Lawrence como a actriz é uma muleta para o sucesso mundial da saga.    


Apesar da sensação de não-evento, The Hunger Games: A Revolta – Parte 1 preludia adequadamente o último filme. É um prelúdio que, sacrificando-se para conter toda a condescendência, toda a dragagem e represada propaganda, faz antecipar um desfecho mais em força e com todo o deslumbramento devido, um em que todas as personagens podem brilhar pela última vez (com destaque para a última interpretação de Philip Seymour Hoffman) e em que o conflito de Panem ficará finalmente resolvido.

CLASSIFICAÇÃO: 3 em 5 estrelas


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sábado, 8 de novembro de 2014

Filme: Interstellar (2014)

Tecnicamente assombroso e a espaços inigualável, Interstellar é um filme ambicioso, de grande escala, que continua o estado de graça de Christopher Nolan, mesmo que não atinga todo o potencial prometido.  

Num futuro próximo, a população humana passa por grandes apertos. A fome abunda, pragas espraiam-se e o ar é cada vez mais irrespirável. Quando certo dia Cooper (Matthew McConaughey), um antigo piloto da NASA que agora se dedica à agricultura, dá ouvidos à sua filha Murph sobre fenómenos estranhos que acontecem no seu quarto, Cooper descobre uma missão secreta dos seus antigos empregadores para salvar a humanidade, uma que o levará a atravessar o espaço e a enfrentar inesperados perigos e sacrifícios.

Christopher Nolan provou e continua a provar que não gosta de histórias fáceis. Se se excluir a trilogia O Cavaleiro das Trevas onde Nolan se rende de certa forma ao facilitismo da banda-desenhada – não poderia ser de outra forma –, os projectos originais do realizador britânico, de Memento a A Origem, têm sempre presente o desafio racional de obrigar a pensar na narrativa, nas suas premissas, nos seus desenvolvimentos e nos seus nem sempre óbvios desfechos. A capacidade de Nolan para fazer o espectador sair do cinema com a cabeça à roda, embrulhada em questões, é ímpar no panorama cinematográfico actual. Concorde-se ou discorde-se com parte ou mesmo com todo o filme, nenhum espectador se exonera totalmente do exercício de reflexão que a narrativa exige, por vezes se calhar até contra a sua própria mensagem e ideia. Como não poderia deixar de ser, Interstellar rege-se pelas regras deste habitual enquadramento de Nolan.

Inspirada nas teorias do físico Kip Thorne, que trabalhou como consultor científico e como produtor executivo no filme, a história de Interstellar coloca a humanidade no seu limite, num futuro próximo em que os recursos se esgotaram e a humanidade se definha. Lutando diariamente pela sobrevivência e pela continuidade, Cooper e a sua filha Murph deparam-se com uma anomalia gravitacional, um fantasma para Murph, que os leva a descobrir uma missão secreta da NASA para encontrar novos mundos passíveis de colonizar e de assim salvar a humanidade. Embora o terrível sacrifício de deixar a sua família para trás e correndo o risco de não voltar a vê-la, Cooper aceita liderar a missão pelo simples instinto de protecção dos seus filhos. O amor de Cooper pela sua família, e por Murph em particular, é o grande motor do filme. Numa narrativa que se preenche de ciência e de fenómenos incríveis, por vezes numa toada expositiva difícil de acompanhar, é uma decisão corajosa que o principal elemento seja o mais inquantificável de todos. Algures no infindável e escuro espaço ou num planeta estranho e inóspito, a salvação da humanidade não reside na ciência. Não verdadeiramente. Reside na força quase inconcebível que um pai tem para proteger os seus filhos e nos esforços impossíveis que corporizará para assegurá-lo.

Por seu pecado, Christopher Nolan nem sempre lida da melhor forma com esta componente menos científica do seu argumento, que assina com o seu irmão Jonathan Nolan. Por vezes passa a ideia de algum desconforto neste tema e por vezes trata o material de uma forma mais expositiva e menos visual do que o desejável. Vale-o o elenco seguro e extremamente competente capaz de passar as mensagens mais corriqueiras e estranhas de um modo natural. Quaisquer que sejam as suas falhas, Nolan compensa-as com panoramas e sequências visuais e sonoras perfeitamente deslumbrantes – a música de Hans Zimmer acompanha Interstellar com o habitual rigor do compositor alemão. Na técnica, poucos chegam perto de Nolan na actualidade. As inspirações de filmes como 2001: Odisseia no Espaço são evidentes. Nolan não se acanha desta comparação e planos existem que constituem uma verdadeira homenagem ao clássico de Kubrick. A forma como a narrativa tenta atingir algo de metafísico, como alude sempre ao transcendente, é outro exemplo, embora aqui com numa nuance diferente e eventualmente menos inteligível. Quiçá o foco na ciência, nas suas terminologias e formulações teóricas se amplifique em excesso. O truque para entranhar e usufruir da melhor forma de Interstellar, pelo menos na sua primeira visualização, é não considerar demasiado a ciência, a sua lógica e as suas incongruências. Tal deve ficar para depois, após a visualização, no tal momento em que Nolan faz o espectador sair do cinema com a cabeça à roda, embrulhada.

Interstellar é o filme mais ambicioso de Christopher Nolan, mas não é, discutivelmente, o seu melhor ou a sua definidora obra-prima. Essa ainda estará para vir. Como se apresenta, Interstellar coloca-se lado a lado com a obra do realizador britânico, obra que até agora ainda não conheceu nenhum passo em falso. Talvez nunca venha a conhecer.

CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas


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