sábado, 23 de fevereiro de 2013

Filme: Força Anti-Crime (2013)


Força Anti-Crime fica muito aquém da potencialidade da sua interessante história e do seu forte elenco. O motivo? A sua teimosa obsessão com a acção e a sua fobia ao desenvolvimento de caracteres e propósitos.   

Em Los Angeles, no pós-Segunda Guerra Mundial, o criminoso Mickey Cohen (Sean Penn) tem a cidade nas suas mãos e o poder político e judicial no seu bolso. Quando Cohen decide alargar a sua operação e tornar LA num centro de lavagem de dinheiro, um grupo de polícias vingadores, sem nomes, sem uniformes e sem piedade, liderado pelo Sargento John O'Mara (Josh Brolin), é composto em segredo. Cohen é desafiado pela mesma forma que desafia outros e o seu reinado pode estar em causa.  

Força Anti-Crime possui, à primeira vista, os elementos certos para um bom filme de época, mas trabalha quase todos pobremente, sem emoção, perdendo o controlo sobre a estilização abusiva e sobre a abundância da violência. O argumento surge inacabado, fraco, incapaz de estabelecer um elo afectivo entre personagens e espectador, incapaz de tornar as suas motivações moralmente prementes e justificáveis. Tais fundamentos não são, todavia, completamente desconhecidos do espectador: o filme perde alguns minutos a produzir relações de causalidade entre punidores e punidos, mas não bastam, ou satisfazem, quando se percebe que tal apetrecho é apenas um meio para justificar a acção desmiolada e novas sequências de violência estilizada, acompanhadas por uma banda sonora aterradora. A ideia que fica é que a história não importa, que as questões sobre a legalidade, a moralidade e a integridade das acções de um grupo de polícias vingadores não são relevantes. Tudo é somente um veículo para mais sequências de disparos e explosões, barulhentas e aborrecidas, que mais lembram um jogo de consola que um trabalho cinematográfico – especialmente perceptível no acto final do filme. Os eventos, vagamente baseados na passagem do gangster, ex-pugilista, Mickey Cohen pela cidade de Los Angeles, são espremidos até ao limite, suportando durante duas horas uma linha de narrativa que, sem os elementos reflectivos, precisaria de muito menos tempo para ser desenvolvida.

Na sequência do tiroteio num cinema em Aurora, Colorado, na estreia de O Cavaleiro das Trevas Renasce, Força Anti-Crime voltou atrás para refazer algumas cenas e mudar alguns eventos, em particular uma cena de violência num cinema. É de lamentar que o realizador Ruben Fleischer, claramente fora do seu meio, não tenha aproveitado a oportunidade para compreender o que já ia mal com o seu projecto e acrescentar outra dimensão à sua história. O lamento não se fica apenas pelo argumento, mas pelo excelente grupo de actores que compõe o elenco e que se vê, de repente, no meio de algo que provavelmente encarava com melhores olhos. Sean Penn, versado em papéis de criminosos, e que bem se esforçou para criar uma versão aliciante de Mickey Cohen, deve sentir-se defraudado com o resultado final. O mesmo deve acontecer com Josh Brolin, Ryan Gosling e Emma Stone (reduzida ao papel de dama em apuros).

Força Anti-Crime não é o grande filme de época, sobre o crime e a Máfia, que anunciava ser. Não fica perto de qualquer grandeza cinematográfica. É, sobretudo, um exercício de montagens em câmara-lenta, de diálogos corriqueiros e cenas típicas. Interessa pelos seus actores, mesmo que unidimensionais neste trabalho, e pela representação da época, com belos cenários e um bom guarda-roupa – provavelmente os únicos elementos positivos e engrandecedores do filme. O que sobra é vulgar e esquecível, sem originalidade.      

CLASSIFICAÇÃO: 2,5 em 5 estrelas


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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Filme: Bestas do Sul Selvagem (2013)


Bestas do Sul Selvagem é um trabalho ímpar, deslumbrante e desassossegador. Colocando a condição humana sob uma lupa escrupulosa, analisa matérias relevantes e transmite uma extraordinária lição de vida. Uma viagem maravilhosa.

Hushpuppy (Quvenzhané Wallis), com seis anos, vive com o seu pai Wink (Dwight Henry) na Banheira, uma região pantanosa no sul do Luisiana. Enquanto aprende que a Banheira pode um dia desaparecer, com a subida do nível das águas, Hushpuppy presencia um comportamento progressivamente alienado do seu pai, fruto do álcool e de doença gradual. Certo dia, acontece uma terrível tempestade que coloca a sobrevivência da Banheira em causa e que compromete a relação entre pai e filha.

A condição humana de sobrevivência encontra-se exposta em Bestas do Sul Selvagem na forma mais sórdida, despudorada, onde a decadência humana abunda e a inocência espanta. Na Banheira, terra de exilados, necessitados, isolada do mundo industrial e da sociedade consumista, a vida assume uma forma tribal, de subsistência, onde os mais velhos se encontram enrugados com a carga da vida e das suas vicissitudes e os mais novos se encontram incrivelmente ingénuos, cegos à maldade da vida, do mundo e dos homens. A intersecção de tão distantes e dissemelhantes gerações cria na Banheira uma interacção maravilhosa, se não perturbante, entre as acções desequilibradas dos mais velhos, desmoralizados, e as interrogações morais dos mais novos, purificados, em que o ex-líbris se encontra na relação entre Wink e Hushpuppy.

Hushpuppy, seis anos de idade, é o epíteto da inocência, da humildade e da bondade, que vê o Homem como mais um elemento do grande panorama da natureza e do universo, nem mais acima nem mais abaixo dos restantes seres vivos. Desligada das pretensões humanas de superioridade, compreende melhor que os crescidos à sua volta o círculo da vida e o lugar inferior que ocupa perante a força da natureza e a inevitabilidade da sua fúria. Tal fúria arrasa eventualmente a Banheira, sob a forma figurada de extintos auroques, majestosos, que Hushpuppy enfrenta corajosamente para mostrar que aceita o seu ínfimo lugar na roda-viva. Mas antes de Hushpuppy se dar a tal arrojada confrontação, começa a compreender o significado da vida, da emancipação e da insubordinação, quando o seu pai, alcoólico recorrente, começa a dar sinais de prolongada doença – no que deve ser uma demonstração de anemia falciforme –, ausentando-se do nada ou tomando questionáveis atitudes. Wink recusa-se a parecer fraco perante a sua filha, cuja quer ver forte e autónoma, máscula, mesmo que à força, ao isolamento e ao insulto, preparando-a para a sua definitiva ausência. Tais atitudes colocam-no perto de perder Hushpuppy, ainda fascinada com a mãe, que procura; mas Wink, na alienação da sua bebedeira e da sua doença, encontra-se ciente do que está a criar – um fascinante acto de fingindo desinteresse para o fortalecimento da sua filha.  
  
As mensagens em Bestas do Sul Selvagem são tantas e tão pertinentes que se torna impraticável não sentir ou impressionar com pelo menos algumas delas, se não com todas. A história de Wink e de Hushpuppy é a motriz do filme, é certo, mas todas as outras, presenciadas pelos olhos curiosos de Hushpuppy, acrescentam ainda mais valor à premissa inicial. A pobreza é um tal notável caso, recriada de maneira impiedosa, que choca e exige ponderação, sobretudo quando do seio de semelhante meio surge singela felicidade. Afinal, como Hushpuppy explica no prólogo da história, a Banheira tem mais feriados e celebrações que qualquer outro lugar no mundo. Outras questões sociais impõem-se, como o direito à propriedade e o dever do poder governamental em zelar, mesmo que em contrariedade com o primeiro direito, pela segurança e saúde dos seus habitantes.     

Eximiamente adaptado da peça Juicy and Delicious pela própria autora, Lucy ALibar, e filmado de forma singela e incansável, imaginativa, com um olhar sorrateiro e curioso, focado e desfocado, pelo estreante Benh Zeitlin, Bestas do Sul Selvagem é um exercício marcante e maravilhoso, rotulado por uma actuação soberba da jovem promessa, incrível revelação, Quvenzhané Wallis. Nunca é um fardo simples agarrar as rédeas de toda uma narrativa, mas Wallis fá-lo de uma maneira natural, encantando com a sua voz adorável e com as suas expressividades meditabundas. Também Dwight Henry desempenha maravilhosamente o seu papel, perturbando e comovendo conforme os acontecimentos. Nomeado para quatro Óscares® (Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Actriz e Melhor Argumento Adaptado), Bestas do Sul Selvagem adopta a selvageria da humanidade para provar que mesmo que dentro de cada um haja a esperança de superação, a singeleza da vida não é um mal, é um caminho, que molda e enche de virtudes.   

CLASSIFICAÇÃO: 5 em 5 estrelas


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Nomeada para Melhor Crítica de Cinema nos TCN Blog Awards 2013

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Filme: Hitchcock (2013)


A intenção de Hitchcock é a de homenagear o trabalho do realizador britânico e a produção de um dos seus mais famosos – se não o mais marcante de todos eles – filmes. Embora triunfe satisfatoriamente nesse aspecto, alicerçado numa actuação maravilhosa de Anthony Hopkins, erra absolutamente na sua injustificada ambição de dramatizar o desnecessário.  

Alfred Hitchcock (Anthony Hopkins) é um conceituado realizador que se encontra sem um novo projecto e que se sente ameaçado com o cenário de fim de carreira. Assombrado por alguns projectos televisivos de pouco sucesso, sente a necessidade de um projecto arrojado que volte a colocar o seu nome na ribalta. Alfred encontra um livro baseado num assassino em série e decide adaptá-lo, contra a vontade da sua mulher Alma (Helen Mirren). A sua determinação levá-lo-á a concretizar um dos mais conceituados filmes de sempre: Psico.

Psico é, discutivelmente, o maior sucesso do britânico Alfred Hitchcock. É certamente o seu maior sucesso de bilheteira e uma incontornável obra-prima do suspense que redefiniu os limites do horror e introduziu um novo nível concebível de ansiedade e aflição no espectador. Mas a rodagem de Psico não foi natural. Negada por várias produtoras, o realizador foi forçado a efectuar um investimento próprio, encarado pela indústria como de risco e irreparável. Alfred Hitchcock levou a sua ideia, o seu turbilhão criador, avante e o resultado é um dos filmes mais conceituados da história do cinema. Adaptado do livro Alfred Hitchcock and the Making of Psycho, de Stephen Rebello, Hitchcock propõe-se a recriar a teimosia, a inspiração e o método do aclamado realizador. Até certo ponto, Hitchcock consegue cumprir satisfatoriamente o seu propósito, mas, ao contrário da obra do homem que lhe serve de fundação, sacia-se apenas com o fazer bem, sem pretensões de excelsas características, não fugindo, ou evitando a importância, de convencionalismos dramáticos.

Os convencionalismos rodeiam quase sempre Alma e a sua relação com o argumentista Whitfield Cook. Hitchcock pretende estabelecer uma dicotomia sucesso-insucesso da filmografia de Alfred apoiada na qualidade da relação com a Alma: quando a rodagem de Psico se encontra encalhada e designada ao fracasso, a relação de Alfred com Alma encontra-se tensa e ameaçada, e vice-versa. Mas que Hitchcock dê demasiada importância ao mexerico que constitui a relação de trabalho entre Alma e Whitfield constitui um rudimentar mecanismo para o verdadeiro propósito desta dramatização: aliar Alma a todo o êxito do britânico. Desnecessário, pois a autoridade de Alma nos projectos do realizador foi desde sempre reconhecida e partilhada por ele próprio.

Hitchcock prende finalmente a atenção quando concentra os seus esforços na essência da sua premissa: a rodagem de Psico. Hitchcock corria o risco de funcionar como um rotinizado olhar documental aos bastidores, e não evita alguns automatismos, mas desperta interesse no seu recontar de eventos, envolvendo Alfred numa maré de desafios – de produção, de aprovação, de sedução, de obsessão – que vão introduzindo novas dinâmicas ao longo do enredo e vão colocando questões inesperadas sobre as capacidades – e até a sanidade – do britânico. Anthony Hopkins desaparece no ecrã, encarando notavelmente o seu compatriota, reproduzindo os seus maneirismos, a sua voz e a sua forma despretensiosa de estar com classe.   

Talvez por não ter um estilo próprio – é a sua primeira longa-metragem (não considerando o documentário Anvil: The Story of Anvil) –, ou em homenagem a Alfred Hitchcock, ou talvez ambos, Sacha Gervasi procura reproduzir ao longo do filme muitas das então inovadoras técnicas do britânico. Designadamente, tenta introduzir alguma categoria de suspense no argumento escrito por John J. McLaughlin, com planos súbitos, luzes reduzidas e edições frenéticas. É particularmente evidente quando recria a filmagem da famosa cena do chuveiro de Psico, mas noutras também, embora nem sempre com sucesso ou competência.  

No fim de contas, Hitchcock consegue tornar mais pessoal o trabalho e a envolvência de Alfred em Psico, estabelecendo uma motivação – para a necessidade de filmar – aliada à idade e à concepção do fim da carreira. Falha em quase todos os aspectos que escapam à temática de Psico, mas consegue pelo menos glorificar o trabalho do mestre do suspense e mostrar, com uma certa dose de humor, as relações nos estúdios de Hollywood e os pequenos tabus instalados. Basta, satisfaz, mas apenas isso.

CLASSIFICAÇÃO: 3 em 5 estrelas

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quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Filme: The Master - O Mentor (2013)


Ancorado em duas brilhantes actuações de Phoenix e Hoffman, The Master – O Mentor vai muito para além da censura ao culto para colocar em primeiro plano a dificuldade humana de relacionamento e de cura mental.

Freddie Quell (Joaquin Phoenix) é um veterano da Marinha que cumpriu serviço durante a Segunda Guerra Mundial. Afectado por transtorno de stress pós-traumático e com dificuldades de ajustamento à sociedade pós-guerra, Freddie salta entre empregos, lugares e pessoas durante cinco anos até eventualmente se cruzar, num barco em que entra clandestinamente, com Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman), fundador de um movimento filosófico chamado “A Causa”. Dodd sente uma qualquer inspiração vinda de Freddie e introduz-lho o seu grupo e propõe-se a ajudá-lo.

The Master – O Mentor é, à primeira vista, uma análise ao culto e ao fenómeno da crença e do poder da doutrina. Paul Thomas Anderson terá baseado “A Causa” na Cientologia, com o mentor interpretado por Hoffman a representar L. Ron Hubbard – o fundador –, os seus métodos, as suas alegadas formações académicas e o seu percurso. A comparação é ainda mais óbvia considerando a época da narrativa – os anos 50 –, em que os traumas e as feridas pós-guerra fomentaram o crescimento de novos movimentos e filosofias. O método do “processing” que Dodd emprega em Freddie, questionando-o agressivamente para aliviar traumas passados, é uma clara representação do método da dianética proposto por Hubbard, bem como a crença numa alma imortal que já ocupou vários receptáculos. Mas as comparações, e a importância do movimento para o argumento, acabam aí.

“A Causa”, ou a Cientologia, seja como for, é apenas um recurso aplicado na tentativa de terapêutica de um alcoólico com dificuldades de relacionamento, de comportamento errático, imprevisível, obcecado por sexo, arruinado por uma qualquer, não completamente revelada, violenta experiência passada: Freddie. Incapaz de manter um emprego depois de regressar da guerra, Freddie acumula incidentes e inimigos, até que o acaso, e também o arrojo, o colocam no mesmo barco de Dodd. Freddie sente-se integrado no grupo de Dodd como nunca antes fora noutro grupo e excede-se na sua gratidão com actos violentos contra os detractores da “Causa”. Inspirado por algo em Freddie, Dodd dá continuidade ao seu trabalho, enquanto aplica as suas metodologias para expor e tratar as dificuldades de Freddie. Mas quando os problemas estão enraizados e encobertos como no caso de Freddie, a cura só é possível com empenho próprio e sincera vontade de mudança. Nesse sentido, Dodd serve de mentor a Freddie, mas é a sua própria instabilidade e coerência, enquanto líder e doutrinador, que coloca a recuperação dele em causa.     

O Mentor dificilmente sobressairia sem as actuações e a interacção entre Phoenix e Hoffman. O desempenho de cada um dos actores é magistral e inspirador, particularmente nas sequências em que partilham o ecrã. Amy Adams também se apresenta em grande nível. Paul Thomas Anderson consegue colher sempre grandes interpretações do seu elenco, mas a sua habilidade não é ao acaso. Tal como é perceptível com Daniel Day-Lewis em Haverá Sangue, n’O Mentor Phoenix e Hoffman encontram-se relativamente à solta, improvisando à medida e exagerando à vontade. Anderson deixa-os criar o seu espaço, limitando-se a gravar as suas representações como um espectador maravilhado, sem grandes movimentos de câmara, como alguém que não consegue tirar o olhar de cima. Depois, nos momentos certos, tal como numa cena em que Freddie e Dodd conduzem uma moto no deserto, abre-se em grandes e irrepreensíveis planos, metódicos, que abrem espaço à reflexão do espectador. 

O Mentor, pautado por admiráveis momentos, e por uma banda sonora frenética, é, sobretudo, a história de uma jornada de auto-descoberta, de cura e de libertação, mesmo que eventualmente nenhuma das três se concretize plenamente ou da forma esperada. Possivelmente, é igualmente uma censura à Cientologia, mas tal perde importância quando são valores e expectativas humanas que alicerçam o argumento. O Mentor encontra-se nomeado para três Óscares® pelos desempenhos de Phoenix, Hoffman e Adams. 

CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas


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