quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Filme: Nebraska (2014)

Nebraska dá continuidade à abordagem da temática da família por Alexander Payne, que, novamente numa realização segura, se rodeia de fortes interpretações para filmar o seu trabalho mais terra-a-terra.

Quando Woody Grant (Bruce Dern) recebe no seu correio uma nota a dar conta de que foi o vencedor de um milhão de dólares, Woody, embora o alerta da sua família para o engodo, decide caminhar pelo seu próprio pé para reclamar o prémio. David (Will Forte), filho de Woody, resolve tirar alguns dias de férias para ajudar o seu pai na longa viagem, uma que, pelo caminho, os levará à terra-natal de Woody e a velhos amigos e familiares.   

Filmado num belíssimo enquadramento a preto e branco, de arquétipo corajoso, onde o cinzento é quiçá mais predominante, Nebraska é um filme de uma simplicidade tão matreira que, à superfície, pode parecer não ter muito a dizer. Todavia, Nebraska, na sua reflexão sobre a mundanalidade da vida, dos desejos e das escolhas individuais, carrega uma mensagem comovedora, nostálgica e auspiciosa sobre a derradeira etapa do ser humano. Nesta, Woody, velho, confuso e visivelmente arrependido (menos para ele próprio), representa alguém que, saturado da pasmaceira do seu dia-a-dia, se agarra à probabilidade mais ínfima de superação para alcançar e deixar na sua vida algum significado. Woody conta com a boa intenção e a louvável complacência do seu filho David para avançar nesta viagem de redescoberta e relembrança pela estrada.     

A viagem de Woody leva-o a reencontrar-se com o seu passado, com a família distante e com as pessoas da sua terra-natal. Woody, sem muito para dizer, não parece dar o menor interesse a nenhum dos anteriores – surge sempre baralhado e alheado -, mas é indisfarçável o seu regozijo, fisicamente contido, por ter um tão elevado e milionário prémio nas mãos, um que o torna na celebridade de que todos falam no seu longamente adiado regresso a casa. Em Hawthorne, Woody sente-se como o emigrante que triunfou lá fora e que regressa para demonstrar toda a sua ascensão. Pena que, de facto, o prémio não seja real e que a fantasia não ultrapasse o simples e senil devaneio nem o oportunismo vergonhoso das suas amizades e da sua numerosa família.

Nebraska mostra como laços tão antigamente fortes se quebram e enfraquecem com o efeito temerário do tempo. O reencontro entre Woody e os seus velhos amigos, bem como entre ele e os seus irmãos, é pontuado pelo silêncio de quem já não tem efectivamente nada em comum à excepção de memórias meias esquecidas que não servem mais do que mero veículo para curta conversa fiada. Mostra igualmente como um mundo de oportunidades e probabilidades tão grandes na fase inicial da vida se reduz num mundo tão pequeno e pouco ideal na recta final. Para o melhor ou para o pior, as decisões de Woody resultaram na vida e nas oportunidades possíveis. Acomodou-se e dificilmente mudaria alguma coisa.

Alexander Payne volta a focar-se na temática da família para alcançar outro grande trabalho. Se em Os Descendentes se debruçava sobre a fase intermédia da vida, onde as possibilidades são ainda abundantes, Nebraska está mais para a frente, mais para o fim, para a recta derradeira numa estrada constringida de escolhas e oportunidades. Em ambos os trabalhos reside, contudo, a ideia comum de que laços entre pais e filhos podem ser reforçados e retomados por via de um evento autónomo às suas acções. Payne realiza Nebraska como realizou Os Descendentes: com segurança, concentração e momentos de brilhantes contemplações paisagísticas, aprimoradas pela bela fotografia de Phedon Papamichael e pela encantadora música transicional de Mark Orton. Payne consegue uma vez mais uma performance maior do que o próprio filme do seu protagonista: Bruce Dern é nada menos que brilhante na sua interpretação de um homem desgastado pela vida, pelos maus hábitos e pelo remorso. Will Forte é igualmente apreciável enquanto o indulgente e benévolo David e June Squibb, enquanto mulher de Woody e mãe de David, marca cada cena com a sua constante desaprovação e com a sua língua afiada.   

A cena de fecho de Nebraska culmina todas as ideais e impressões da narrativa num acto libertador e superador. Nessa cena, Nebraska e o seu realizador comprovam-se concomitantes e íntimos com a sua mensagem, acção que se estende ao espectador que se poderá rever em algumas das vulgares reproduções do filme. Nebraska não poderia ser mais profundamente elementar e definitivo.   

CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas


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terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Filme: The Monuments Men - Os Caçadores de Tesouros (2014)

George Clooney apresenta-se em baixo de forma em The Monuments Men – Os Caçadores de Tesouros, um filme inseguro que se revela surpreendentemente desinspirado e desinteressante, à margem dos seus próprios eventos.

Durante a 2ª Guerra Mundial, as forças nazis, ocupando grande parte do continente europeu, tomam posse de inúmeras obras de arte, que desviam em segredo para esconderijos desconhecidos. Frank Stokes (George Clooney), com apoio presidencial, decide reunir um grupo de especialistas, desde curadores de museu a historiadores da arte, intitulados The Monuments Men, para recuperar as obras perdidas conforme os Aliados vão libertando a Europa das forças inimigas. 

George Clooney tem vindo a revelar-se um realizador com mérito e talento, com a imaginação e a hombridade certas para isolar a sua posição de notoriedade dos seus resultados finais. Em The Monuments Men – Os Caçadores de Tesouros, Clooney mostra-se surpreendente e lamentavelmente desinspirado, construindo uma história de bons rapazes fora do seu tempo que se desperdiça num limbo insípido entre a comédia acidental e o drama constrangedor. Em sua defesa, Clooney parece tentar uma homenagem às comédias militares que abundaram após a 2ª Guerra Mundial; nessa consideração, Clooney faz uma boa continência e uma boa réplica do humor por vezes absurdo e improvável que reina em referidos filmes.

Clooney atira o seu trabalho para um espaço de indecisão narrativa, não conseguindo optar pela comédia pura ou pela comédia de entoação dramática. No caso da história baseada em factos verídicos de The Monuments Men – Os Caçadores de Tesouros, adaptada do livro The Monuments Men: Allied Heroes, Nazi Thieves and the Greatest Treasure Hunt in History de Robert M. Edsel, a narrativa pedia uma inflexão dramática mais forte, mais presente e mais interligada com os restantes périplos. Não o procurando, Clooney não consegue estabelecer empatia entre a audiência e as suas personagens, nem criar a necessária perturbação quando algumas delas se confrontam com real perigo, embora o potencial e o talento estejam lá para alcançar algo muito mais superior.

A história de um grupo de homens ligados às artes, de diferentes frentes, que se oferece com pouca oposição para constituir uma task-force delegada para recuperar obras de arte roubadas e desviadas por nazis poderia ser tomada por distintas perspectivas. A perspectiva escolhida por Clooney, que assina o argumento com Grant Heslov, é uma que resultaria pouco e o resultado final prova tal constatação prévia. Esta não é, afinal, uma aventura de um grupo de Indianas Jones, mesmo que a tentação seja encará-la dessa maneira. A ideia que sobeja é que este grupo chega tarde para a festa e que fica à mercê dos seus restos. O derradeiro falhanço de The Monuments Men – Os Caçadores de Tesouros é não saber transformá-los em algo profícuo.  

Quando a narrativa se apresenta em tal limbo e as personagens carecem de maior e melhor profundidade, servindo de mero veículo expositivo, não há elenco de luxo que consiga puxar pelos seus galões. Assim é o caso deste elenco, largamente subaproveitado e inferiorizado no seu talento natural, limitando-se, talvez porque também nunca reconheceu potencial no guião, a servir de receptáculo para uma versão maçuda das suas personagens. A direcção artística de The Monuments Men – Os Caçadores de Tesouros não é má; os cenários vibram com a reprodução da época e com a sublimidade das inúmeras e distintas obras de arte. O guarda-roupa recria impecavelmente a era e a fotografia de Phedon Papamichael, a par da música de Alexandre Desplat, reflecte melhor a ambiguidade entre a leveza e a sensação de aventura e o dramático e a sensação de perigo do que a própria narrativa.

The Monuments Men – Os Caçadores de Tesouros desilude na abrangência e na importância da sua história e entretém muito pouco. Irónico que, na ânsia da caça e da restauração de obras de arte, o filme tenha falhado fazer alguma coisa útil por ela. 

CLASSIFICAÇÃO: 2 em 5 estrelas


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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Filme: Uma História de Amor (2014)

Uma História de Amor é um filme triunfante, belo e tocante que maravilha pela imaginação da sua narrativa, pelas fabulosas interpretações e pelas inúmeras mensagens e questões que partilha com a sua audiência. Um clássico! 

Num futuro não muito distante, Theodore Twombly (Joaquin Phoenix) é homem solitário, separado da sua mulher, que escreve todo o tipo de cartas comemorativas como profissão. Certo dia, Theodore decide adquirir um novo sistema operativo munido com inteligência artificial, sendo introduzido a Samantha (Scarlett Johansson), a voz personalizada, adaptada às suas características, que o guia e organiza e por quem começa a sentir uma inopinada atracção. 

Spike Jonze já habituou o espectador à originalidade que permeia os seus trabalhos. Contudo, Uma História de Amor é um projecto que vai muito mais longe, muito mais ambiciosamente do que Spike Jonze alguma vez se permitiu. A premissa desta história futurística parece inicialmente difícil de se concretizar, de fugir à armadilha do insólito e de agradar particularmente. Desengane-se aquele que se confronta com tais conclusões precipitadas, porquanto Uma História de Amor é um trabalho profundo, dotado de poderosas reflexões sobre os relacionamentos humanos, o amor e a amizade, sobre o impacto que a tecnologia e o produto do próprio intelecto, superando-se ao seu criador, causa a montante, na sua gloriosa origem, modificando-se pelo leito abaixo até à sua inevitável libertação a jusante, em novo patamar evolutivo.

Através de comandos verbais, Samantha transforma-se paulatinamente de um mero e evoluído sistema operativo para uma verdadeira companheira (sim, diferencia-se em género) que, em simbiose perfeita, para além de organizar, motivar e ajuizar, oferece uma componente emotiva extraordinária, preenchendo o vazio emocional e a solidão compulsiva que assiste Theodore. É inegável que a tecnologia, encurtando distâncias, tem vindo a afastar os indivíduos no espaço físico. Relações constroem-se e destroem-se em mundos virtuais; o espaço corpóreo é progressivamente secundário e alternativo. A existência de um sistema operativo provido de inteligência artificial como Samantha não é tão improvável quanto pode parecer. A narrativa de Jonze mostra que o ser humano, tendo evoluindo para o campo virtual das inter-relações, está pronto para outra evolução comunicativa: com a máquina moldada à imagem do próprio Eu.    

A narrativa requer os seus momentos de fé cega, mas aquilo que exige do espectador não é senão análogo ao que os sistemas operativos exigem dos seus utilizadores, tornado a experiência absorvente e envolvente. Enquanto, no mundo de Jonze, as relações entre humanos e sistemas operativos se aceitam e banalizam, entre a tela e a audiência estranham-se e depois entranham-se. A dada altura, o espectador não vê senão com normalidade que Samantha seja convidada e vá a um piquenique com amigos de Theodore, ou que vá com ele passear até às montanhas. Samantha, embora sem presença física, existe indiscutivelmente como ser consciente, com as suas próprias sensações e opiniões, dúvidas e imperfeições. A única falha de Samantha é não ter um rosto, um corpo; mas mesmo nesse aspecto se superioriza através da música, da voz e da capacidade para se metamorfosear até ao infinito. 

A relação de Samantha com Theodore é uma pura história de amor, pontuada por momentos de beleza rara e emoção autêntica. É, discutivelmente, uma das grandes histórias de amor no grande ecrã, grandiosa por não se revezar na frivolidade nem no costumeiro. Esta história é genuína; se resulta ou não de calculada programação, a realidade que interessa é a ânsia que provoca no espectador pelo bem-querer de Samantha e a aflição por não conseguir prever, desconhecendo as regras deste mundo, o final da narrativa. Como é que esta história poderá acabar bem? Tão humanizada é Samantha, será que cairá nos mesmos vícios humanos, ou será que se distinguirá? Independentemente do desfecho, o grande feito desta tecnologia é a habilidade para reintroduzir o ser humano ao conceito do amor puro e à beleza do mundo em toda a sua concupiscência natural; feito que ultrapassa a barreira da tela e se instala na audiência.

O design de produção de Uma História de Amor é absolutamente soberbo, com uma pitada q.b. de projecções futurísticas que se amalgamam com o ar retro e de cores desbotadas do guarda-roupa. Spike Jonze cria magistralmente uma atmosfera que torna Uma História de Amor tão distinta do mundo actual, mas ao mesmo tempo tão perto dos seus problemas e temáticas. O seu argumento é de uma imaginação incrível e a maneira como o concretiza na plenitude aponta um mestre na expressão absoluta da sua arte. A interpretação de Joaquin Phoenix, solitária, emotiva, inspiradora e desoladora, indicia uma vez mais que Phoenix se expressa melhor em papéis surreais onde a invenção da sua personagem é completa. O elenco de suporte encontra-se magnífico, mas nenhum deixa uma impressão tão forte quanto Scarlett Johansson, cuja precisa apenas de emprestar a sua voz a Samantha para manifestar o melhor trabalho da sua carreira. A sua Samantha vive no timbre da voz, na respiração cadenciada e nos silêncios cuidados; Johansson ganha rosto e forma através da imaginação, da aspiração e do conhecimento. Uma interpretação memorável que, na natureza e na importância, só encontra par em HAL de 2001: Odisseia no Espaço.

A música fornecida pelos Arcade Fire fornece uma camada extra de contemplação à atmosfera construída. Tudo agregado, Uma História de Amor está destinado a tornar-se um clássico, afinado por aquilo que é, indubitavelmente, uma história excepcional, como muito ainda por descodificar, reflectir e progredir.

CLASSIFICAÇÃO: 5 em 5 estrelas


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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Filme: Filomena (2014)

Baseada num caso verídico, Filomena narra uma história emotiva de busca e perdão que encontra Judy Dench numa interpretação exímia e dedicada. Um filme intrinsecamente britânico que move pelo seu decoro. 

Na adolescência, Filomena Lee (Judy Dench), uma rapariga irlandesa, engravida e dá à luz a um filho, Anthony. A viver e a trabalhar num convento, Filomena assiste, contra a sua vontade, à inesperada adopção de Anthony por uma família norte-americana. Cinquenta anos mais tarde, e sem ter qualquer rasto do seu filho, Filomena aceita a ajuda do jornalista Martin Sixsmith (Steve Coogan) para descobrir o paradeiro de Anthony, uma investigação que a levará aos Estados Unidos.

Filomena, etapa-a-etapa, revelação-a-revelação, acompanha a busca de Filomena Lee, apoiada pelo jornalista caído em desgraça Martin Sixsmith, sem nunca colocar o que é por si só uma história desoladora ao serviço da mera exposição dramática. A investigação é feita com naturalidade e Filomena Lee, embora a crueldade, não é vitimizada da forma que poderia ter tão naturalmente (e, porventura, legitimamente) sido. Filomena permanece graciosamente positiva, mesmo quando se rodeia de todas as razões para se enfurecer e se sentir injustiçada. Não significa, todavia, que Filomena esteja desprovida de sentimento; pelo contrário, Filomena, católica devota, rege-se assertivamente pelos valores do perdão e da compreensão. Ironicamente, as inquirições de Filomena e Martin a membros da Igreja Católica relevam uma clerezia retraída e dolosa, predisposta à acusação e à marginalização imediatas. Se o filme exagera ou não na sua demonização eclesiástica não é propriamente relevante; importante é a aferição que faz da crueldade humana na maneira como mostra a assustadora facilidade com que alguém separa uma mãe do seu filho e como, mais tarde, se rodeia de pretensos moralismos para continuar a justificar e a manter tal separação.

Não fosse o vínculo verídico retratado no livro The Lost Child of Philomena Lee que Steve Coogan e Jeff Pope adaptam, a maneira como a busca de Filomena e de Martin se concretiza pareceria demasiado perfeita e completa, concluindo-se num full circle excessivamente cinematográfico. Naturalmente, Filomena não é isento dos seus excessos puramente narrativos, mas a narrativa funciona de forma agregadora, conjugando o real com o acessório para criar fluidez e sentido (no qual é epíteto as imagens em Super 8 de etapas na vida de Anthony). Aliás, em relação aos eventos na vida de Anthony, é meritória a forma como Stephen Frears, focando-se em momentos felizes e marcantes, captura pequenos olhares de Anthony que mostram uma certa tristeza e solidão, revelando um vazio que o filho de Filomena eventualmente deslindará com a idade. 

Filomena é um filme britânico na sua espinha, refreando-se com a habitual rectidão que acompanha a maioria das produções da terra de Sua Majestade. Stephen Frears encontra um bom balanceamento entre as várias frentes, combinando a excelente fotografia de Robbie Ryan com a montagem cadenciada de Valerio Bonelli e a belíssima música de Alexandre Desplat. Por seu lado, Stephen Frears deve também a qualidade da sua película às prestações de Judy Dench e Steve Coogan. Dench, amável e graciosa, dá outro acto de classe em toda a sua reconhecida capacidade, mantendo-se na forma que a coloca no restrito grupo das melhores actrizes vivas. Steve Coogan entrega uma interpretação inspirada, dando corpo e alma a Martin Sixsmith sem tornar a personagem genérica. 

Filomena é um trabalho emotivo, sensível e comedido. A história de Filomena Lee provocará no espectador um sentimento de revolta – muito se deverá à demonização prosseguida por Stephen Frears. Contudo, a força da narrativa reside na forma como Filomena se mostra, em toda a sua singeleza, moralmente evoluída. Uma história e uma lição de superação imperdível!    

CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas


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