quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Filme: Lincoln (2013)


Lincoln é mais uma grande consagração do incrivelmente talentoso Daniel Day-Lewis, mas um exercício demasiado rotineiro de Steven Spielberg, refreado por um argumento excessivamente sistemático que pode desnortear audiências não-americanas.

A Guerra Civil Norte-Americana encontra-se perto do fim e o Presidente Abraham Lincoln (Daniel Day-Lewis) decide levar a cabo o seu projecto de emancipação de todos os oprimidos da América, de abolição da escravatura. Mas quando tal intenção pode prolongar o conflito militar, estando já em confronto com os princípios de muitos Representantes, o Presidente confrontar-se-á com uma acesa guerra política.  

A história de Abraham Lincoln é inegavelmente enriquecedora e várias são as biografias e as adaptações ao pequeno e ao grande ecrã que se presumem mostrar o 16º Presidente dos Estados Unidos da América e, particularmente, o homem, o carácter e as crenças por debaixo do cargo, de uma terrível guerra civil e de desamparadas lutas cívicas. Lincoln dispõe-se do conhecimento à priori de Abraham, com a sua figura, o seu estilo e o seu mito estabelecidos. Baseado na biografia histórica “Team of Rivals: The Political Genius of Abraham Lincoln” de Doris Kearns Goodwin, o filme concentra-se exclusivamente nos últimos quatro meses de vida do Presidente, nos esforços finais para pôr cobro a uma terrível guerra civil que destruía toda uma nação e no seu compromisso para colocar um fim à escravatura. Lincoln, fundamentalmente, representa as dificuldades na aprovação da 13ª Emenda à Constituição norte-americana, com críticas ao processo americano de decisão, envolvido num jogo político desgarrado, decidido por meio da corrupção e da aliciação.

Abraham, mergulhado numa vontade decorosa de presenciar igualdade entre os seus cidadãos, recorre ao suborno, imoral, como meio para alcançar uma virtude maior, mesmo que tal empreendimento lhe possa custar toda uma guerra e adiar, ou desconvocar, um processo de paz em curso. Lincoln nunca identifica completamente a origem compassiva do Presidente, já envelhecido e desgastado, mas mostra toda a sua humanidade como homem de família, como pai de um filho perdido para a febre tifóide, como marido de uma mulher instável e como patrono de uma nação ferida. Se Lincoln parece um filme incompleto é precisamente por ficar no ar a ideia de um trabalho dividido entre Abraham-presidente e Abraham-homem, onde é notório um empenho mais esforçado na política do que na essência do ser. E quando a política ostentada envolve uma edificação de princípios e de processos normalmente desconhecidos para o espectador não-americano, perde a fracção Abraham-presidente alguma importância, por mais que elaborados os discursos incitadores e irónicos dos seus representantes.    

Durante a primeira metade de Lincoln o jogo político é particularmente complexo, lento, e o papel de cada um dos seus actores, que nem sempre fogem à excessiva caricatura, é confuso. Somente quando todos os interesses e intenções são colocados em campo é que Lincoln sobe de patamar e melhora substancialmente, ancorado numa brilhante e memorável actuação de Daniel Day-Lewis, excelentemente caracterizado, sobressaído no jogo de luz e sombras proporcionado pela fotografia crua, iluminada palidamente. Tommy Lee Jones e Sally Field também ajudam a distinguir Lincoln, encarando personagens históricas à sua maneira, sem receio de as galvanizar demasiado. A execução de Steven Spielberg é, curiosamente, contida, resistindo à tentação de recriar algumas das batalhas da guerra civil – apenas o desfecho é apresentado – para manter sempre a objectiva no Presidente e nas suas aspirações, embora nem sempre no melhor interesse do argumento. Todos os restantes elementos da produção estão bem (em particular a banda sonora de John Williams, colaborador e engrandecedor incansável dos projectos de Spielberg), mas não deixa de ficar a sensação de algo deixado para trás – o ingrediente-chave – que tornaria Lincoln especial. A razão pode estar na excessiva politização do argumento, mais preocupado com o jogo político do que com a pertinente mudança social em curso. Nomeado para 12 Óscares®, incluindo Melhor Filme, Lincoln perdurará pela interpretação de Daniel Day-Lewis, mas dificilmente ficará no panteão a que aspirou chegar. 

CLASSIFICAÇÃO: 3,5 em 5 estrelas


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sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Filme: Django Libertado (2013)


Tarantino torna-se com Django Libertado mestre completo do seu estilo e censurador admirável da vergonha humana. Django Libertado é uma história arrojada de impecável direcção, brilhantes actuações e sequências memoráveis.

Em 1858, dois anos antes da Guerra Civil Norte-Americana, o Dr. King Schultz (Christoph Waltz), um dentista alemão em viagem pelos Estados Unidos, cruza-se com os Irmãos Speck, três esclavagistas que transportam um grupo de escravos recentemente adquiridos. Schultz procura um escravo em particular que os Speck possuem: Django (Jamie Foxx). Schultz adquire Django e revela as suas verdadeiras intenções: encontrar e matar os Irmãos Brittle – cujo aspecto apenas Django conhece – a fim de conseguir uma recompensa estatal. Django acorda, com uma condição: ser libertado depois da sua tarefa para poder resgatar a sua mulher, também escrava, vendida em castigo a uma plantação distante.

Quentin Tarantino há muito que estabeleceu a sua marca e o seu toque spaghetti nas suas duas décadas de actividade. Com Django Libertado (o D é silencioso), Tarantino aborda pela primeira vez o género de que é tão claramente aficionado, o género para o qual parece estar a preparar-se desde a sua monumental estreia em Cães Danados. Em Django Libertado, todo o incrivelmente agradável desconcertado estilo de Tarantino encontra a sua casa e sua verdadeira essência. O habitual grafismo e os súbitos grandes planos, ou as momentâneas transições ao som de melodias clássicas ou músicas modernas, enchem-se de pertença e brilhantismo. É, porventura, essa percepção de conformidade com o género que faz Django Libertado parecer, curiosamente, o filme mais controlado de Tarantino, mais encadeado num conjunto de regras cinematográficas. Mas o aparente autodomínio de Tarantino sobre a sua por vezes alienada visão não significa que Django Libertado é um filme menor em comparação aos seus trabalhos anteriores – pelo contrário, mostra amadurecimento, aperfeiçoamento e compreensão dos limites do seu estilo assimétrico.

Quando Tarantino afirma que Django Libertado está em linha com Sacanas Sem Lei (e que é o segundo de uma trilogia que acabará algures nos próximos anos com Killer Crow) é fácil de compreender a essência da sua comparação. Sacanas Sem Lei apresenta a revolta dos subjugados ao subjugador, numa forma de ironia fria que aponta as deficiências humanas e a grotesca ideia de supremacia de um sobre o outro, uma revolta que na realidade não teve lugar na época em questão. Django Libertado segue a mesma cadeia de sentença, trocando um grupo de amotinados judeus contra o subjugador Adolf Hitler na Segunda Guerra Mundial por um revoltado escravo da raça negra contra os seus brutos, e por vezes asnos, escravizadores imediatamente antes à Guerra Civil Norte-Americana. A vingança, quase a qualquer custo, é um tema recorrente nos trabalhos de Tarantino, mas em Django Libertado, quando a reprovação fica mesmo em casa, o realizador vai mais longe e dá uma bofetada histórica e destemida num tema – a escravatura – que ainda tem feridas abertas na nação Americana. E quando Django, um dissimulado anti-herói, exerce a sua justiça no típico caos do derradeiro clímace, a censura de Tarantino fica completa e os eventos emendados, mesmo com o espectador ciente de que tal dramatização e rectificação histórica jamais teriam lugar na época retratada.

Tarantino impressiona sempre com o seu esmero, mas é também a sua capacidade de obter actuações memoráveis e atípicas do seu elenco que eleva as suas histórias para outro patamar. Efectivamente, todo o elenco de luxo de Django Libertado, possivelmente motivado pela direcção frenética e pelas ambiências históricas, alcança brilhantismo. Particularizar o trabalho de um ou outro actor é quase um exercício desnecessário, mas é obrigatório elogiar o sarcasmo corajoso de Christoph Waltz, a audácia intermitente de Jamie Foxx, a autoridade arrepiante de Leonardo DiCaprio, a comicidade perigosa de Samuel L. Jackson e a beleza guardada de Kerry Washington.

Se Django Libertado é um filme perfeito? Não é. Desde logo, a sua duração, por mais que o estilo e a imprevisibilidade entusiasmem sempre, é excessiva, padecendo com uma segunda hora que se arrasta sem grandes acontecimentos e que se perde em atalhos desnecessários. Depois, o epílogo é comprido e faz sentir a falta de algumas personagens que encontram o fim no segmento prévio. Mas com os seus momentos tensos, com as fantásticas actuações, com paisagens lindíssimas (as belas pradarias do sul norte-americano através da fotografia primorosa de Robert Richardson) e com um argumento delicioso (de perfeitos diálogos e silêncios), Django Libertado é um deleite para apreciadores e curiosos. Nomeado para cinco Óscares®, incluindo Melhor Filme, Melhor Argumento Original e Melhor Actor Secundário (para Waltz, no que deve ter sido uma decisão difícil da Academia entre o austríaco, DiCaprio e Jackson), Django Libertado é o mais perto de obra-prima de Tarantino.

CLASSIFICAÇÃO: 4,5 em 5 estrelas

Site Oficial: http://unchainedmovie.com/
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quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Filme: O Impossível (2013)


O Impossível é uma belíssima reprodução da entreajuda, da ternura e do amor que une uma família separada pela tragédia e pela incerteza. A sua missão é a de tornar o improvável exequível num cenário em que todas as probabilidades se encontram a vermelho.  

A 26 de Dezembro de 2004 um terramoto de elevada magnitude acontece no Oceano Índico. O terramoto causa poucas vítimas e danos materiais. Mas a partir do epicentro do evento natural começa um terrível tsunami que atinge todo o sudeste asiático e que provoca incontáveis danos e centenas de milhares de mortos e de feridos. Entre os atingidos encontra-se a família Bennett, a passar o Natal numa estância turística na Tailândia. Separados pelas águas e incertos do destino de cada um, os Bennett não desistirão uns dos outros.

O impacto do tsunami que assolou o sudeste asiático no final de 2004 teve efeitos devastadores a nível ambiental e a nível económico. Mas foi ao nível humano que a tragédia mais arrasou, resultando na morte de quase um quarto de milhão de pessoas. O Impossível recria as horríficas vivências de uma família instalada num resort em Khao Lak, Tailândia, colocando a força e a imprevisibilidade da natureza contra a força e a determinação humanas. O filme começa pela tranquilidade, pela mundanidade e pela beleza do destino turístico da família Bennett. É nestes instantes preludiais que as ternas ligações entre Maria, Henry, Lucas, Tomas e Simon são instituídas e que o choque de uma tragédia inopinada, de que o espectador é consciente e impotente, começa a causar comoção. A calamidade chega sem surpresa e impressiona com o poder de destruição e com a terrível pujança que Juan Antonia Bayona e Óscar Faura recriam espectacularmente, colocando inicialmente o espectador numa falsa posição de transeunte do mesmo resort da família Bennett. As grandes ondas separam a família Bennett e o espectador apenas observa e sente a luta com as ferozes águas de Maria e Lucas e as escolhas morais com que se confrontam. A sobrevivência de Henry, Tomas e Simon é revelada a posteriori.

Mas a sobrevivência à brutalidade das águas não garante a sobrevivência final e O Impossível troca o desastre pela convalescença, exibindo as difíceis condições e a escassez de meios que recebeu os sobreviventes, uma outra calamidade que não pode ser ignorada. Todo o esforço humanitário, ou falta dele, é apresentado, mas sempre num plano secundário, focando no primeiro o caminho difícil da família Bennett para o reencontro, agravado pelas mazelas da tragédia, pelas barreiras linguísticas e pelas informações erradas. A convalescença não é só física: é também psicológica e afecta cada sobrevivente de maneira diferente. Para a família Bennett, entranhada no amor que a une, significa agarrar-se à esperança e à crença de que o tremebundo pesadelo terá um fim e que tudo ficará bem. É esse mesmo anseio que acompanha o espectador e que o enche de emoção quando o impossível se metamorfoseia num triunfo.

O Impossível sofre, no entanto, com a sua ansiedade de querer mostrar tudo de uma vez, tornando o que é impossível, ou muito difícil, num simples acaso de passiva orientação. E que a noção de perigo nunca esteja verdadeiramente instalada, ou que a retribuição moral nunca seja completa, encurta o nível de excelência. Felizmente, a execução é maioritariamente favorável e as actuações são fortes. Naomi Watts é fabulosa, Ewan McGregor é irrepreensível e Tom Holland, em particular, revela-se uma surpresa e um jovem talento a manter olho em cima – momentos há em que, confrontado com o sofrimento e com a necessidade de socorro, lembra um então jovem Christian Bale em Império do Sol. A música de Fernando Velázquez é bonita e sensível, mas há alturas em que extravasa a ocasião cinematográfica. A produção espanhola de O Impossível deve ser enaltecida e o trabalho do seu realizador elogiado, provando que filmes de grande escala sobre significativos eventos da História não estão apenas reservados aos grandes estúdios de Hollywood. 

CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas


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quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Filme: 00:30 – A Hora Negra (2013)


Intenso, marcante e incomparável, 00:30 A – Hora Negra recria os eventos que levaram à captura do líder da Al-Qaeda de forma superior, adicionando uma índole pessoal que torna a notável história discutível e ousada.   

Depois do ataque ao World Trade Center a 11 de Setembro de 2001, os Estados Unidos da América lançam uma feroz caçada ao seu inimigo n.º 1: Osama bin Landen. A agência de espionagem CIA fica a cargo da investigação, empenhando métodos questionáveis para obter informações sobre o paradeiro do líder da Al-Qaeda. Quando os esforços são reduzidos e a caçada perde prioridade, um elemento da agência, Maya (Jessica Chastain), mantém-se persistente e encontra e insiste na pista que leva por fim, quase uma década depois, à eliminação do inimigo americano n.º 1.  

00:30 – A Hora Negra não se restringe à mera captura de Osama bin Laden, indo muito mais além para apresentar, sem medo ou vergonha, todos os actores envolvidos, do escalão mais baixo ao mais alto, e todos os métodos aplicados, conscienciosos ou sem escrúpulos. Dividido em capítulos estratégicos que começam logo após o ataque às torres gémeas a 11 de Setembro de 2001, 00:30 – A Hora Negra principia a sua longa busca com os reprováveis métodos da CIA de interrogação que tanto estrido causaram e causam ainda: as práticas de tortura. Quanto ali é real ou ficção provavelmente nunca será revelado, mas Kathryn Bigelow, que teve acesso a documentos secretos sobre toda a operação, revela coragem na sua abordagem à polémica, filmada com incómodo para causar mal-estar e reprovação, mostrando as técnicas de afogamento e de privação de sono tal com foram presumivelmente executadas. 00:30 – A Hora Negra elogia tanto o esforço americano para pôr fi ao terrorismo quanto o questiona e condena.

O filme é igualmente a história da persistência e da obstinação de uma agente da CIA (alegadamente real) para fazer justiça. Jessica Chastain interpreta Maya com frieza a sobriedade, camuflando vestígios de incómodo por aquilo que faz para além do correcto e do honesto. A qualidade de Chastain já tinha provas mais do que dadas (em A Árvore da Vida ou em As Serviçais), mas ficam aqui inquestionavelmente afirmadas. Maya é a heroína que guia a acção, que cria importância e emoção, que o espectador quer ver triunfar e ser provada certa contra todas as opiniões e evidências. Chastain captura o bem-querer do espectador com tremenda espontaneidade e quando Maya enfim triunfa e se liberta da camuflagem que oculta a sua emoção, o desabafo extravasa o ecrã.

Kathryn Bigelow filma todos os momentos de uma forma agitada, com uma câmara inquieta que parece bisbilhotar secretamente todos os eventos, mas sempre certa e segura dos planos que captura e da ansiedade que cria. Em particular, o acto final do assalto ao complexo habitacional onde vivia bin Laden, incluindo os momentos de preparação que o antecedem, é intenso, perturbante e intranquilizador, mesmo quando já todos nós conhecemos perfeitamente o desfecho da missão. O génio de Bigelow reside precisamente em originar no espectador ansiedade e incerteza, despindo-o do conhecimento para lhe exibir os atribulados eventos em primeira mão. Este momento cinematográfico é provavelmente o melhor do ano, secundado pela inquietante música de Alexandre Desplat e pela fotografia dissimulada de Greig Fraser. 

Tal como tinha alcançado com Estado de Guerra, Bigelow consegue um filme expressivo e incontornável que perpetua, muito para além da pertinente temática da captura e eliminação de um dos mais perigosos e temidos homens do século XXI. 00:30 – A Hora Negra não responde às mais conspiradoras questões sobre a missão, deixando até alguma réstia de dúvida. Mas este não deixa de ser um filme, uma representação de eventos reais que nunca abandonará a inevitável – glorificadora da arte – página fictícia.  

CLASSIFICAÇÃO: 4,5 em 5 estrelas

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terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Filme: Amor (2012)


Amor é uma das mais puras e íntimas histórias contadas em primeira mão no cinema. É um filme incrível, memorável e incontornável. Verdadeiramente extraordinário.

Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva), dois reformados professores de música, acabam de regressar de um concerto de um antigo protegido. Octogenários, Georges e Anne permanecem um casal feliz e apaixonado. Na manhã seguinte, Anne sofre uma trombose e fica com o lado direito do corpo paralisado. O amor do casal é colocado à prova, conforme o estado de saúde de Anne se deteriora e Georges se sente mais isolado e agoniado.

Amor é tão minimalista na forma como aborda a vida e a morte, a doença e o afecto, que o espectador se sente mergulhar no ecrã, directamente na sala de Georges e Anne, cujos sente e sofre como familiares e amigos seus. Partilha a dor de Georges de aos poucos e poucos estar perder, lenta e penosamente, a companheira da sua vida, das suas vivências, das suas memórias. Partilha a confusão de Anne, a sua vontade de recordar e o seu medo de esquecer. Acima de tudo, partilha a compaixão e a cumplicidade entre ambos e compreensão de que o amor, tantos anos depois, tantas experiências depois, não abandonou: entranhou-se em cada gesto, em cada conversa banal, em qualquer acto piedoso. Amor é um panegírico à vida humana, à condição humana de pensar e deixar de pensar, de contrariar as adversidades e de eventualmente aceitá-las, encontrando no revés a possibilidade infinitamente pequena de felicidade e de carinho. É também a representação da enfermidade como parte integrante da vida, impossível de ignorar, difícil de controlar, custoso de aceitar, mas subitamente presente e autoritária, desafiadora da rotina física e do costume psicológico. A enfermidade exige repensar tudo o que vinha como certo, impõe considerar o fim de um longo ciclo, quer para Georges, na iminência da solidão, quer para Anne, na iminência da escuridão.

Amor é realizado por Michael Haneke da maneira mais simples, com planos banais, deliberadamente privado da surpresa e do espanto, da música e da cor viva, como uma enorme pintura de uma mão cheia de simples momentos que se encontra exposta a uma relativa distância, que não pode ser tocada ou tirada do sítio, mas contemplada e sentida. E a realização despetrechada dá espaço à complexa e crua interpretação, tanto de Jean-Louis Trintignant como de Emmanuelle Riva, tão honesta e verdadeira que torna impossível não acarinhar e sensibilizar, mesmo à distância da tela e da tela ao elegante apartamento de Georges e Anne. Tudo em Amor é percebido como honesto e autêntico.     

Amor é uma obra primorosa, sem sentido de irreflectida comercialização, de juízos fáceis e de radiantes conclusões – aliás, o inevitável desfecho de Anne fica logo claro no prólogo da narrativa, evitando ansiosas aspirações de fenómenos Deus ex machina, criando espaço para a meditação e para o usufruto de cada momento como derradeiro. Amor não é um romance, nem um drama: é um excerto da vida como a conhecemos. Nomeado para cinco óscares, incluindo melhor filme, melhor filme estrangeiro e melhor argumento original, Amor é uma maravilha da realização desinteresseira, da moral genuína e da vida compreendida. 

CLASSIFICAÇÃO: 5 em 5 estrelas

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sábado, 12 de janeiro de 2013

Filme: Guia para um Final Feliz (2013)


Pontuado por interpretações excelentes, Guia para um Final Feliz é um notável drama romântico, com deliciosas e inteligentes doses de comédia, que faz muito mais para além de mostrar a possibilidade de um final feliz: mostra a necessidade de transpor os monstros de cada um e de aceitar a ajuda do próximo.  

Pat (Bradley Cooper) é um indivíduo com bipolaridade que acaba de ser libertado de uma instituição psiquiátrica depois de cumprir um internamento de 8 meses por causa de um acesso de raiva e violência. Enquanto tenta conciliar o seu regresso a casa com o bem-estar da sua família, Pat procura redimir-se e recuperar o seu casamento. Quando o seu caminho se cruza com o de Tiffany (Jennifer Lawrence), Pat poderá ter um aliado inesperado.  

Guia para um Final Feliz extravasa as barreiras tipicamente rígidas dos dramas e comédias românticas para se transformar numa relevante história sobre o conflito pessoal, o conflito familiar e o conflito amoroso. Pat é a motriz por detrás de cada conflito, agarrado a um passado perturbante que quer ultrapassar, mas que não consegue esquecer. Os seus conflitos entrelaçam-se e ganham mais incerteza quando colide com Tiffany, outra pessoa similarmente perturbada. Tiffany, tal como Pat, é alguém resignado e negativo, capaz de explodir a qualquer momento. Enquanto Pat procura libertar-se com optimismo do monstro dentro de si, Tiffany procura restringir-se à probidade com agressividade e mal-estar. A sua história é tão intrinsecamente humana e o seu guia para um final feliz passa pela salvação mútua, pela cura conjunta que requer para um o melhor do outro. Guia para um Final Feliz é também um olhar sobre o vício, a obsessão e o desarranjo familiar consequente. Não é claro o efeito que causaram sobre cada elemento, mas é perceptível que se alastraram de maneiras diferentes por todos, lidadas de modos distintos. A cura é igualmente conjunta, mas o desafio reside na concentração de vontades que são maioritariamente opostas e desinteressadas.

Cooper e Lawrence desempenham brilhantemente os seus papéis, com Lawrence um pequeno degrau acima. Cooper interpreta Pat com ansiedade e controlada instabilidade, com gestos nervosos que antevêem cada um dos seus conflitos e incapacidade de transposição. Lawrence representa Tiffany com mais serenidade, de alguém já versado aos seus problemas e efeitos, mas ganha agressividade momentaneamente e explode a bel-prazer. Lawrence afirma-se cada vez mais como a melhor actriz da sua geração, enquanto Cooper mostra pela primeira vez que há mais no seu trabalho e na sua capacidade expressiva para além da comédia fácil. A performance de Robert De Niro, de um pai viciado e ausente, é também admirável. Depois de uma década de filmes e interpretações pobres, De Niro redime-se e mostra que quem sabe nunca esquece.

A realização de David O. Russell (que já tinha convencido no emocionante The Fighter: Último Round) é particularmente minimalista e contida, sem perder o foco das personagens e dos seus dramas. Não se deixa influir pelas características do género e usa-as sempre em favor da história que quer contar e das inferências morais que pretende incutir. Em particular, os planos onde Cooper e Lawrence se encontram a correr lado a lado, abrangendo tanto o drama como a comédia, exibem perfeitamente o controlo de Russell.

Guia para um Final Feliz, adaptado do romance homónimo de Matthew Quick, foi, no mesmo dia de estreia em Portugal, nomeado para 8 óscares da Academia, incluindo Melhor Actor Principal (Cooper), Actriz Principal (Lawrence), Actor Secundário (De Niro) e Realização (Russell). As nomeações não só valorizam o filme como revitalizam o género e provam que é possível escapar ao marasmo que maioritariamente o determinam. Acima de tudo, Guia para um Final Feliz demonstra que nem sempre é o final em si que importa, mas a jornada para o alcançar.

CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas

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sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Filme: Os Miseráveis (2013)


Os Miseráveis sobrevive à conta da história de redenção de Jean Valjean, mas quase tudo à volta encontra-se desprovido de congruência e sofre de deficiente construção afectiva entre personagens e espectador. Jackman e Hathaway entregam-se de corpo e alma.

Jean Valjean (Hugh Jackman) consegue a liberdade condicional do seu guarda prisional, Javert (Russel Crowe), após dezanove anos de penitência pelo roubo de um pão. A miséria impele Valjean a cometer roubo numa igreja, onde um bispo lhe concede abrigo. Novamente capturado, Valjean é perdoado pelo bispo e decide dar a volta à sua vida. Anos mais tarde, sob outro nome, tendo fugido à sua obrigação de se apresentar periodicamente às autoridades, Valjean volta a confrontar-se com Javert, que continua à sua procura. Na sequência, Valjean causa o despedimento e a desgraça de uma funcionária da sua fábrica, Fantine (Anne Hathaway), e enfrenta outro caminho de redenção.

Os Miseráveis não deixa qualquer dúvida quanto ao seu carácter musical, o que lhe concede benesses nas sequências mais climáticas, mas deixa a desejar, e empurra para um marasmo enervante, nas sequências mais corriqueiras. Os diálogos maioritariamente musicais, embora bem compostos e ensaiados, não deixam de causar a impressão de uma excessiva teatralização que não assenta completamente no grande ecrã, onde os instantes silenciosos se exigem para as necessárias apreensões e para o estabelecimento do elo emocional entre as personagens e o espectador, para a compreensão dos seus conflitos e da sua jornada moral. Os Miseráveis contém uma variedade de arquétipos da sociedade, tão presentes na sociedade francesa do século XIX como na sociedade contemporânea. Temas como a justiça (colectiva e divina), a redenção e a paridade atravessam toda a longa história e afectam as diversas personagens de um modo fatídico. Mas quando o elo emocional entre as vidas retratadas e o espectador falha tanto como aqui, a moral fica pelo caminho e a redenção é apenas imaginária.

Chega efectivamente a ser frustrante a forma como tantas relevantes problemáticas são levantadas e depois são rapidamente descartadas em detrimento de um romance que nunca é correctamente estabelecido ou cria importância no espectador. É ainda mais frustrante que trágicas decisões de certas personagens tenham por base o mesmo romance, ou falta dele, e que o arranjo consequente exija do espectador uma comiseração fácil que mal teve alicerce. Talvez tal disposição funcionasse no teatro, considerando as características da arte, mas nesta, quando a exigência não tem cabeça, resulta num trabalho fraco e cobarde. Não fosse a jornada fidedigna de Jean Valjean, e o curto mas valoroso acto de Fantine, não haveria tábua de salvação. Felizmente para Os Miseráveis, o argumento trabalha bem essas duas personagens (que são, no fim de contas, as mais importantes da obra homónima de Victor Hugo) e ressalva-se minimamente.
     
Ajudam também as interpretações cruas e carregadas de comoção de Jackman e Hathaway, que além disso, e particularmente a última, são capazes de usar a voz sem medo de falhanço ou de desafinação (quando acontece, é mais um reflexo da pesada carga emotiva do que da inexistência de talento musical). O mesmo já não se aplica a Crowe: ninguém duvida da sua capacidade de actuação, e até é decente no filme, mas não é possível perdoar a inexistência de uma voz aceitável. E quanto a vozes diz respeito, o melhor desempenho pertence a Samantha Barks. Deve ser também realçado o contributo de Helena Bonham Carter e de Sacha Baron Cohen, cujo timing cómico traz o necessário subterfúgio quando o que está à volta já não agarra.  

A decisão de filmar as actuações musicais ao vivo é definitivamente arriscada, mas Tom Hooper consegue equilibrar com uma edição apurada e com momentos de apoteose interessantes. A fotografia é bonita, composta numa tela de cores mais básica, os cenários confundem-se entre o real e o teatral, e a música é adequadamente harmoniosa ou tensa. A duração é excessiva, mesmo que a história seja longa. No final, Os Miseráveis deixa um sabor amargo e a ideia do que de tão bem poderia ter feito se tivesse tido um foco mais rígido e legitimado. Não é a história da obra de Victor Hugo que está em causa, ou sequer a sua adaptação musical ao teatro. É tão-somente o falhanço de Tom Hooper e do seu grupo de argumentistas em compreender e transmitir a pertinência moral e de optar pela estilização em vez da substância. 

CLASSIFICAÇÃO: 3 em 5 estrelas

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