sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Filme: Os Miseráveis (2013)


Os Miseráveis sobrevive à conta da história de redenção de Jean Valjean, mas quase tudo à volta encontra-se desprovido de congruência e sofre de deficiente construção afectiva entre personagens e espectador. Jackman e Hathaway entregam-se de corpo e alma.

Jean Valjean (Hugh Jackman) consegue a liberdade condicional do seu guarda prisional, Javert (Russel Crowe), após dezanove anos de penitência pelo roubo de um pão. A miséria impele Valjean a cometer roubo numa igreja, onde um bispo lhe concede abrigo. Novamente capturado, Valjean é perdoado pelo bispo e decide dar a volta à sua vida. Anos mais tarde, sob outro nome, tendo fugido à sua obrigação de se apresentar periodicamente às autoridades, Valjean volta a confrontar-se com Javert, que continua à sua procura. Na sequência, Valjean causa o despedimento e a desgraça de uma funcionária da sua fábrica, Fantine (Anne Hathaway), e enfrenta outro caminho de redenção.

Os Miseráveis não deixa qualquer dúvida quanto ao seu carácter musical, o que lhe concede benesses nas sequências mais climáticas, mas deixa a desejar, e empurra para um marasmo enervante, nas sequências mais corriqueiras. Os diálogos maioritariamente musicais, embora bem compostos e ensaiados, não deixam de causar a impressão de uma excessiva teatralização que não assenta completamente no grande ecrã, onde os instantes silenciosos se exigem para as necessárias apreensões e para o estabelecimento do elo emocional entre as personagens e o espectador, para a compreensão dos seus conflitos e da sua jornada moral. Os Miseráveis contém uma variedade de arquétipos da sociedade, tão presentes na sociedade francesa do século XIX como na sociedade contemporânea. Temas como a justiça (colectiva e divina), a redenção e a paridade atravessam toda a longa história e afectam as diversas personagens de um modo fatídico. Mas quando o elo emocional entre as vidas retratadas e o espectador falha tanto como aqui, a moral fica pelo caminho e a redenção é apenas imaginária.

Chega efectivamente a ser frustrante a forma como tantas relevantes problemáticas são levantadas e depois são rapidamente descartadas em detrimento de um romance que nunca é correctamente estabelecido ou cria importância no espectador. É ainda mais frustrante que trágicas decisões de certas personagens tenham por base o mesmo romance, ou falta dele, e que o arranjo consequente exija do espectador uma comiseração fácil que mal teve alicerce. Talvez tal disposição funcionasse no teatro, considerando as características da arte, mas nesta, quando a exigência não tem cabeça, resulta num trabalho fraco e cobarde. Não fosse a jornada fidedigna de Jean Valjean, e o curto mas valoroso acto de Fantine, não haveria tábua de salvação. Felizmente para Os Miseráveis, o argumento trabalha bem essas duas personagens (que são, no fim de contas, as mais importantes da obra homónima de Victor Hugo) e ressalva-se minimamente.
     
Ajudam também as interpretações cruas e carregadas de comoção de Jackman e Hathaway, que além disso, e particularmente a última, são capazes de usar a voz sem medo de falhanço ou de desafinação (quando acontece, é mais um reflexo da pesada carga emotiva do que da inexistência de talento musical). O mesmo já não se aplica a Crowe: ninguém duvida da sua capacidade de actuação, e até é decente no filme, mas não é possível perdoar a inexistência de uma voz aceitável. E quanto a vozes diz respeito, o melhor desempenho pertence a Samantha Barks. Deve ser também realçado o contributo de Helena Bonham Carter e de Sacha Baron Cohen, cujo timing cómico traz o necessário subterfúgio quando o que está à volta já não agarra.  

A decisão de filmar as actuações musicais ao vivo é definitivamente arriscada, mas Tom Hooper consegue equilibrar com uma edição apurada e com momentos de apoteose interessantes. A fotografia é bonita, composta numa tela de cores mais básica, os cenários confundem-se entre o real e o teatral, e a música é adequadamente harmoniosa ou tensa. A duração é excessiva, mesmo que a história seja longa. No final, Os Miseráveis deixa um sabor amargo e a ideia do que de tão bem poderia ter feito se tivesse tido um foco mais rígido e legitimado. Não é a história da obra de Victor Hugo que está em causa, ou sequer a sua adaptação musical ao teatro. É tão-somente o falhanço de Tom Hooper e do seu grupo de argumentistas em compreender e transmitir a pertinência moral e de optar pela estilização em vez da substância. 

CLASSIFICAÇÃO: 3 em 5 estrelas

Trailer:

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