Bestas
do Sul Selvagem é um trabalho ímpar, deslumbrante e desassossegador.
Colocando a condição humana sob uma lupa escrupulosa, analisa matérias relevantes
e transmite uma extraordinária lição de vida. Uma viagem maravilhosa.
Hushpuppy (Quvenzhané Wallis), com seis anos, vive com o seu pai Wink (Dwight Henry) na Banheira, uma região pantanosa
no sul do Luisiana. Enquanto aprende que a Banheira pode um dia desaparecer, com
a subida do nível das águas, Hushpuppy presencia um comportamento progressivamente
alienado do seu pai, fruto do álcool e de doença gradual. Certo dia, acontece
uma terrível tempestade que coloca a sobrevivência da Banheira em causa e que
compromete a relação entre pai e filha.
A condição
humana de sobrevivência encontra-se exposta em Bestas do Sul Selvagem na forma mais sórdida, despudorada, onde a
decadência humana abunda e a inocência espanta. Na Banheira, terra de exilados,
necessitados, isolada do mundo industrial e da sociedade consumista, a vida
assume uma forma tribal, de subsistência, onde os mais velhos se encontram
enrugados com a carga da vida e das suas vicissitudes e os mais novos se encontram
incrivelmente ingénuos, cegos à maldade da vida, do mundo e dos homens. A
intersecção de tão distantes e dissemelhantes gerações cria na Banheira uma
interacção maravilhosa, se não perturbante, entre as acções desequilibradas dos
mais velhos, desmoralizados, e as interrogações morais dos mais novos,
purificados, em que o ex-líbris se encontra na relação entre Wink e Hushpuppy.
Hushpuppy,
seis anos de idade, é o epíteto da inocência, da humildade e da bondade, que
vê o Homem como mais um elemento do grande panorama da natureza e do universo,
nem mais acima nem mais abaixo dos restantes seres vivos. Desligada das
pretensões humanas de superioridade, compreende melhor que os crescidos à sua
volta o círculo da vida e o lugar inferior que ocupa perante a força da
natureza e a inevitabilidade da sua fúria. Tal fúria arrasa eventualmente a
Banheira, sob a forma figurada de extintos auroques, majestosos, que Hushpuppy
enfrenta corajosamente para mostrar que aceita o seu ínfimo lugar na roda-viva.
Mas antes de Hushpuppy se dar a tal arrojada confrontação, começa a compreender
o significado da vida, da emancipação e da insubordinação, quando o seu pai,
alcoólico recorrente, começa a dar sinais de prolongada doença – no que deve
ser uma demonstração de anemia falciforme –, ausentando-se do nada ou tomando
questionáveis atitudes. Wink recusa-se a parecer fraco perante a sua filha,
cuja quer ver forte e autónoma, máscula, mesmo que à força, ao isolamento e ao
insulto, preparando-a para a sua definitiva ausência. Tais atitudes colocam-no
perto de perder Hushpuppy, ainda fascinada com a mãe, que procura; mas Wink, na
alienação da sua bebedeira e da sua doença, encontra-se ciente do que está a criar
– um fascinante acto de fingindo desinteresse para o fortalecimento da sua
filha.
As mensagens
em Bestas do Sul Selvagem são tantas
e tão pertinentes que se torna impraticável não sentir ou impressionar com pelo
menos algumas delas, se não com todas. A história de Wink e de Hushpuppy é a
motriz do filme, é certo, mas todas as outras, presenciadas pelos olhos
curiosos de Hushpuppy, acrescentam ainda mais valor à premissa inicial. A
pobreza é um tal notável caso, recriada de maneira impiedosa, que choca e exige
ponderação, sobretudo quando do seio de semelhante meio surge singela
felicidade. Afinal, como Hushpuppy explica no prólogo da história, a Banheira
tem mais feriados e celebrações que qualquer outro lugar no mundo. Outras
questões sociais impõem-se, como o direito à propriedade e o dever do poder
governamental em zelar, mesmo que em contrariedade com o primeiro direito, pela
segurança e saúde dos seus habitantes.
Eximiamente adaptado
da peça Juicy and Delicious pela
própria autora, Lucy ALibar, e filmado de forma singela e incansável, imaginativa,
com um olhar sorrateiro e curioso, focado e desfocado, pelo estreante Benh Zeitlin, Bestas do Sul Selvagem é um exercício marcante e maravilhoso,
rotulado por uma actuação soberba da jovem promessa, incrível revelação, Quvenzhané
Wallis. Nunca é um fardo simples agarrar as rédeas de toda uma narrativa, mas
Wallis fá-lo de uma maneira natural, encantando com a sua voz adorável e com as
suas expressividades meditabundas. Também Dwight Henry desempenha
maravilhosamente o seu papel, perturbando e comovendo conforme os
acontecimentos. Nomeado para quatro Óscares® (Melhor Filme, Melhor Realizador,
Melhor Actriz e Melhor Argumento Adaptado), Bestas do Sul Selvagem adopta a selvageria
da humanidade para provar que mesmo que dentro de cada um haja a esperança de superação, a singeleza da vida não é um mal, é um caminho, que molda e enche de virtudes.
CLASSIFICAÇÃO: 5 em 5 estrelas
Site Oficial: http://www.beastsofthesouthernwild.com/
Trailer:
Pessoalmente, deixando a parte técnica de lado, estou torcendo muito para que estes filme ganhe o Oscar, mesmo sabendo que Argo e Lincoln tem mais chances.
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