A
Vida de Adèle, do franco-tunisino Abdellatif Kechiche, é um extraordinário
trabalho de exploração do carácter, da sexualidade e da transição da fase
adolescente para a fase adulta, onde Adèle Exarchopoulos tem um desempenho
memorável. Um dos filmes do ano.
Adèle (Adèle Exarchopoulos), uma jovem
estudante do liceu, começa a ter dúvidas sobre a sua sexualidade. Não querendo
assumir aquilo que é, Adèle tenta manter as aparências, mas sem resultado. Um
dia, Adèle conhece Emma (Léa Seydoux), uma artista plástica e gráfica com um
misterioso cabelo azul, com quem inicia uma tórrida relação. A entrada de Adèle
na vida adulta acarretará, todavia, problemas que Adèle não antecipa e que
podem por em causa tudo aquilo que alcançou.
Adaptado pelo
realizador Abdellatif Kechiche do romance gráfico
Le Bleu est une couleur chaude de Julie Maroh, A Vida de Adèle é um tour-de-force
sobre o renascimento do Eu, onde a sexualidade, camada a camada, é decomposta
na sua forma mais crua e primitiva para criar uma mensagem contundente sobre a
escolha, ou incapacidade para ela. Neste olhar descomprometido, Adèle, que é
introduzida ao espectador na recta final da sua adolescência, surge como um
indivíduo tentativamente normal, à procura da normalidade e da maneira habitual
de fazer as coisas. Começando a compreender que encarcera notórias diferenças
em comparação com o seu grupo, Adèle ouve por alto as conversas das suas amigas
sobre os rapazes do seu liceu e nada sente quando um deles mostra interesse por
ela, interesse que chega a vias de facto para seu desconsolo e desconforto.
Adèle percebe por fim que é diferente, mas, não sabendo como lidar com essa
constatação, deprime-se e fecha-se sobre si mesma.
Certa noite,
Adèle deambula até um bar gay para
testar o seu grau de integração. É nesse bar que Adèle volta a encontrar Emma,
uma rapariga de cabelos azuis que lhe previamente chamara a atenção numa rua.
Logo desde a primeira interlocução, Adèle e Emma entendem-se às mil maravilhas;
Emma é o refúgio que Adèle precisa entre os dois mundos no qual tem um pé, mas
nenhuma real presença. Adèle e Emma iniciam um romance tórrido que cresce para
algo mais maduro e sólido. Adèle parece finalmente na expressão máxima da sua
felicidade, sensação que Abdellatif Kechiche traduz excelsamente nos momentos
que Adèle e Emma partilham num bonito e reservado jardim. O jardim podia
perfeitamente ser o mundo dos sonhos de Adèle, porquanto ali tudo lhe parece
possível. Todavia, Adèle rapidamente descobre que o seu novo mundo é tão igual
ao seu anterior; os problemas são os mesmos e a conjugalidade homossexual
enfrenta os mesmos desafios que qualquer outra relação.
Enquanto coming-of-age, A Vida de Adèle retrata sapientemente a viragem da vida adolescente
para a vida adulta. Adèle, que se apresenta maioritariamente solitária, nunca
consegue integrar-se completamente no meio adulto, nem tão-pouco no meio
artístico e instruído de Emma onde os diálogos são cheios de interpretações
ambíguas e intrincadas. Emma, por seu lado, não realiza o esforço para integrar
Adèle neste meio, sugerindo até a Adèle que tente a escrita e abandone a educação
de infância. Embora Adèle seja a musa para o trabalho de Emma, Emma nunca lhe
dá o devido mérito, aceitando que Adèle se fica reduza a um inglório papel de
dona de casa. Não obstante o relativo assumir da sua sexualidade, Adèle, que se
sentira primeiramente isolada e prisioneira no liceu, volta a experimentar tais
estados na companhia de Emma. Fica patente que o maior problema de Adèle nunca
fora a sua sexualidade, mas a maneira como aparece desligada e desinteressada à
frente das pessoas.
Com o cabelo
desgrenhado e o ar eternamente compenetrado, Adèle Exarchopoulos é
perfeitamente genial no papel de Adèle. Este é um filme que se alimenta da sua
performance e que se pinta com a sua frontalidade. Adèle carrega uma força
emotiva rara no cinema, capaz de transmitir mil e uma sensações e pensamentos
com mero recurso ao rosto e à gesticulação. É impressionante a forma como
verdadeiramente enrubesce numa discussão, ou como as lágrimas e o ranho lhe
descem com naturalidade num choro compulsivo. Poucos dirão que esta é mais
actuação do que experimentação, ou que a força motriz por detrás da sua
capacidade representativa seja meramente impulsiva: é-lo na realidade,
provando-se dedicada e sentida. Adèle mostra-se confortável na sua pele e não
faz passar mal-estar nas verdadeiramente explícitas cenas de sexo. Do outro
lado, Léa Seydoux mostra-se bastante competente. Ainda que não brilhando tanto
quanto Adèle, a prestação de Léa é forte e laudável, criando uma Emma com o seu
encanto e charme, que se destaca muito para além do cabelo azul de saltar à
vista.
Abdellatif
Kechiche consegue um filme fenomenal e inspirado com A Vida de Adèle. A sua realização, embora a longa duração, nunca
perde foco nem sentido das inúmeras mensagens que pretende reflectir (muitas
mais do que uma única visualização permite descortinar), demorando o tempo que
é necessário demorar para desenvolver camada a camada, fala a fala, as suas
personagens e o rumo da sua narrativa. O tempo passa de forma imperceptível e,
do nada, três horas decorrem como que num zás e Adèle transforma-se de uma
jovem rapariga para uma jovem mulher. O mérito de Abdellatif Kechiche, mais do
que na forma como a sua câmara acompanha Adèle ou como não se coíbe à crueza
das cenas explícitas, reside na espontaneidade com que faz passar uma narrativa
que, nas suas temáticas, é complexamente estratificada.
A Vida de Adèle, vencedor da Palma de
Ouro no Festival de Cannes, é definitivamente um dos filmes do ano e um que
ainda vai fazer correr muita tinta, tanto não seja pela maneira como termina a
sua maratona e deixa em aberto a possibilidade de uma futura continuação.
CLASSIFICAÇÃO: 5 em 5 estrelas
Site Oficial: http://www.ifcfilms.com/films/blue-is-the-warmest-color
Trailer:
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