sábado, 22 de dezembro de 2012

Filme: A Vida de Pi (2012)


A Vida de Pi é do ponto de vista técnico magnífico, particularmente na utilização estilizada do 3D. É também um triunfo visual. Mas é acima de tudo uma incrível história com profundos significados, com necessárias reflexões e incontornáveis questões.

Piscine Molitor "Pi" Patel (Suraj Sharma) fica desolado quando os seus pais decidem vender os animais do zoo que dirigem e mudar-se para o Canadá. Dividido entre três religiões, encantado por uma paixão e cansado de se provar à família, Pi embarca com o coração perdido. Mas quando a tragédia o atinge e perde a sua família num terrível naufrágio, Pi embarca numa jornada individual (com uma zebra, um orangotango, uma hiena e um tigre) que colocará no limbo a sua sobrevivência e as suas crenças. Já adulto, Pi conta toda a história a um escritor (Rafe Spall) e leva-o similarmente a questionar as suas crenças.

A Vida de Pi não é uma mera história de sobrevivência de um náufrago em condições desafiantes e impossíveis. Embora tudo isso esteja presente, é um simples apetrecho para um quadro de representações alegóricas de vários apanágios da vida: o instinto de sobrevivência, a fé e o afecto. Interligados, o filme não faz juízos sobre a autoridade de cada um deles relativamente aos outros, remetendo tal escolha para o espectador, que a decidirá conforme a sua própria disposição na vida, na fé e nos relacionamentos. O próprio Pi revela-se uma personagem confusa, inicialmente na religião (segue três teologias), e mais tarde na jornada que realiza através de paragens e ocasiões improváveis. E se no fim se nos apresenta com duas versões dos factos, ainda que o filme apenas desenvolva uma, a confusão já não é de Pi, mas do espectador que deve escolher entre a fantasia e o real, entre as suas próprias convicções e o limite da sua crença.

Dissecar a história em cada uma das suas alegorias é um exercício que se impõe ao espectador durante o visionamento do filme. Não se pode ficar apenas pelo maravilhamento da fotografia e pelos pasmos causados pelas três dimensões que a película espontaneamente ganha em sequências que prendem a respiração. Mesmo a música que acompanha as duas horas sugere uma meditação contínua. Não quer isto significar, no entanto, que o espectador se aliará às conclusões a que Pi e o escritor chegam; podem, na realidade, ser absolutamente contrárias, e a força e a importância do filme residem precisamente nesse aspecto. A Vida de Pi questiona e sugere, toma uma posição, mas deixa terreno vazio para o caminho que cada um quiser construir.

Ang Lee realiza provavelmente o filme mais significante da sua carreira com a adaptação da obra homónima de Yann Martel. A reflexão do realizador taiwanês é perceptível na forma como agarra com sentido cada imagem e como transforma simples cenários de uma barca sobre a água em quadros que remetem para o subliminar e para o espiritualismo. A obra de Yann Martel era considerada impossível de filmar, mas Ang Lee, tal como Pi na história, contorna o impossível e chega a bom porto. A Vida de Pi, todavia, não está isenta de falhas. A primeira metade do filme nunca chega perto da qualidade e da majestosidade da segunda metade, nem se desprende de alguma banalidade na forma como mostra a Índia e a sua cultura, ou como caracteriza algumas personagens secundárias com um importante impacto na jornada de Pi. Felizmente, são males menores e consegue arrancar de Suraj Sharma uma interpretação de alto-calibre.

A Vida de Pi é uma maravilha técnica e uma preciosidade cinematográfica destinada a tornar-se um clássico moderno. Porventura, alguns não o tomarão por mais do que um aprimorado documentário do National Geographic ou do Discovery. Mas nada antes trabalhou tão bem o círculo da vida, a natureza crua e o lugar do ser humano nesse tão vasto meio após despojado de todos os apetrechos produzidos pela sua inteligência.  

CLASSIFICAÇÃO: 4,5 em 5 estrelas

Trailer:



1 comentário:

  1. André, por ter visto o filme ontem e pela mera curiosidade de procurar comentários/críticas que me ajudassem a compreendê-lo ou reforçassem a minha interpretação, encontrei o seu blogue. Não sei se publica as suas críticas noutro espaço, mas o seu texto revela uma sensibilidade rara em textos sobre (bom) cinema e que me agradou particularmente. Enquanto espectador, A Vida de Pi foi um tumulto emocional porque me absorveu, fascinou e questionou na mesma medida. É um filme que vai muito além da exuberância estética e fotográfica e é, de facto, uma alegoria da vida nas suas diversas declinações. Parabéns pelo texto e saudações.
    Nelson Soares

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