Ferrugem
e Osso é um trabalho peculiar, ditosamente diferente, que exige uma visualização
tencionada e atenta para maior interiorização. Não se propõe a emocionar ou a
dramatizar. Apenas sugere. Schoenaerts e Cotillard brilham.
Ali (Matthias Schoenaerts) não tem emprego e
tem agora um problema maior em mãos: o seu filho de cinco anos que a mãe
decidiu abandonar. Ali viaja para o sul de França, onde mora a sua irmã. Ela
fornece-lhe alojamento temporário e Ali arranja um emprego como segurança.
Certa noite, Ali conhece Stéphanie (Marion Cotillard) e acompanha-a a casa, mas
nada mais acontece. Algum tempo depois, Stéphanie sofre um terrível acidente e,
na depressão consequente, volta a entrar em contacto com Ali. Imperceptivelmente, ajudam-se mutuamente.
A narrativa de
Ferrugem e Osso, vista como um todo,
remete para a fase derradeira de uma tragédia clássica, em que já se passou da
felicidade para a infelicidade e se procura a catarse final que liberta e
purifica. Efectivamente, Ferrugem e Osso começa logo para traçar um cenário
negro para Ali, desempregado, sem dinheiro, sem casa e com a responsabilidade
de cuidar de um filho de cinco anos que a mãe abandonou. As adversidades de Ali
cruzam-se com a aparente estabilidade de Stéphanie, empregada, com casa própria
e um relacionamento. Mas, no fundo, Stéphanie é uma heroína que já caminha para
a desgraça, para uma tragédia prenunciada na discoteca em que conhece Ali. A
desgraça acontece, inevitável, custando a Stéphanie as suas pernas e a sua
liberdade. A infelicidade é o elemento que liga Ali a Stéphanie, mesmo que se não
apercebam. Ali ajuda Stéphanie a olhar para além da sua nova condição,
trazendo-lhe liberdade e a noção de que muito do que antes era possível
continua a ser válido. Por seu lado, Stéphanie cria em Ali algo que não
conhecia há muito tempo: uma verdadeira amizade; uma que, aos poucos e poucos,
cresce e se torna em algo maior.
O caminho para
a catarse de Ali e Stéphanie encontra um obstáculo quando ambos tomam
consciência da evolução da sua relação. Stéphanie sente-se desconfortável com a
frieza, o distanciamento e a despreocupação de Ali, enquanto este, desabituado
e inadaptado a uma relação com significado, sente medo. A condição de Stéphanie
nunca é uma particularidade que interdite a relação – aqui reside a força da
narrativa: as únicas barreiras são os desejos e os medos individuais, as intrínsecas
características de ser humano que moldam trajectos e destinos. O melodrama não
é, porquanto, físico: é psicológico. A tragédia, e a consequente catarse,
assume naturalmente a mesma forma – do foro da mente –, mesmo que a cura de Stéphanie
comece no implante de duas próteses e a de Ali na prossecução do seu sonho de kickboxing.
Ferrugem e Osso fraqueja quando parece
assustar-se com a invulgaridade da sua mensagem e introduz na narrativa momentos
triviais na intenção de sossegar o espectador. Esses momentos, todavia,
maioritariamente associados às ilegais lutas de kickboxing e à ilegal espionagem de trabalhadores em supermercados,
desviam a necessária atenção da temática central, não interessando tanto quanto
o filme tenciona. Felizmente, as louváveis interpretações de Matthias
Schoenaerts e Marion Cotillard conseguem desviá-los do total falhanço. Schoenaerts,
de uma forma máscula e distante, e Cotillard, de uma forma sentida e frágil, novamente
de volta ao seu meio privilegiado, engradecem os seus respectivos papéis e
introduzem um nível de qualidade na narrativa que torna a complexa moral mais facilmente
permeável.
O mérito é
também repartido com o realizador Jacques Audiard que, embora os
desnecessários atalhos, raramente perde ideia da sua mensagem principal. A sua
realização resiste à emoção fácil. Na verdade, procura mais vezes criar um
certo mistério e remeter para o espectador a procura de alguma perturbação. Tanto
o é que parece esquecer-se de concluir rigorosamente a sua história: fá-lo de
forma repentina, inopinadamente, entregando ao espectador a função de moldar a
sua conclusão e a sua interpretação da catarse. Talvez não seja uma conclusão
propriamente justa. Aliás, todo o último acto parece apressado e
descontextualizado. Porém, se o espectador se permitir algum trabalho, retirará benefício moral da narrativa de Ferrugem
e Osso.
CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas
Site Oficial: http://sonyclassics.com/rustandbone/
Trailer:
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