sexta-feira, 15 de março de 2013

Filme: Ferrugem e Osso (2013)



Ferrugem e Osso é um trabalho peculiar, ditosamente diferente, que exige uma visualização tencionada e atenta para maior interiorização. Não se propõe a emocionar ou a dramatizar. Apenas sugere. Schoenaerts e Cotillard brilham.

Ali (Matthias Schoenaerts) não tem emprego e tem agora um problema maior em mãos: o seu filho de cinco anos que a mãe decidiu abandonar. Ali viaja para o sul de França, onde mora a sua irmã. Ela fornece-lhe alojamento temporário e Ali arranja um emprego como segurança. Certa noite, Ali conhece Stéphanie (Marion Cotillard) e acompanha-a a casa, mas nada mais acontece. Algum tempo depois, Stéphanie sofre um terrível acidente e, na depressão consequente, volta a entrar em contacto com Ali. Imperceptivelmente, ajudam-se mutuamente.

A narrativa de Ferrugem e Osso, vista como um todo, remete para a fase derradeira de uma tragédia clássica, em que já se passou da felicidade para a infelicidade e se procura a catarse final que liberta e purifica. Efectivamente, Ferrugem e Osso começa logo para traçar um cenário negro para Ali, desempregado, sem dinheiro, sem casa e com a responsabilidade de cuidar de um filho de cinco anos que a mãe abandonou. As adversidades de Ali cruzam-se com a aparente estabilidade de Stéphanie, empregada, com casa própria e um relacionamento. Mas, no fundo, Stéphanie é uma heroína que já caminha para a desgraça, para uma tragédia prenunciada na discoteca em que conhece Ali. A desgraça acontece, inevitável, custando a Stéphanie as suas pernas e a sua liberdade. A infelicidade é o elemento que liga Ali a Stéphanie, mesmo que se não apercebam. Ali ajuda Stéphanie a olhar para além da sua nova condição, trazendo-lhe liberdade e a noção de que muito do que antes era possível continua a ser válido. Por seu lado, Stéphanie cria em Ali algo que não conhecia há muito tempo: uma verdadeira amizade; uma que, aos poucos e poucos, cresce e se torna em algo maior.

O caminho para a catarse de Ali e Stéphanie encontra um obstáculo quando ambos tomam consciência da evolução da sua relação. Stéphanie sente-se desconfortável com a frieza, o distanciamento e a despreocupação de Ali, enquanto este, desabituado e inadaptado a uma relação com significado, sente medo. A condição de Stéphanie nunca é uma particularidade que interdite a relação – aqui reside a força da narrativa: as únicas barreiras são os desejos e os medos individuais, as intrínsecas características de ser humano que moldam trajectos e destinos. O melodrama não é, porquanto, físico: é psicológico. A tragédia, e a consequente catarse, assume naturalmente a mesma forma – do foro da mente –, mesmo que a cura de Stéphanie comece no implante de duas próteses e a de Ali na prossecução do seu sonho de kickboxing.
    
Ferrugem e Osso fraqueja quando parece assustar-se com a invulgaridade da sua mensagem e introduz na narrativa momentos triviais na intenção de sossegar o espectador. Esses momentos, todavia, maioritariamente associados às ilegais lutas de kickboxing e à ilegal espionagem de trabalhadores em supermercados, desviam a necessária atenção da temática central, não interessando tanto quanto o filme tenciona. Felizmente, as louváveis interpretações de Matthias Schoenaerts e Marion Cotillard conseguem desviá-los do total falhanço. Schoenaerts, de uma forma máscula e distante, e Cotillard, de uma forma sentida e frágil, novamente de volta ao seu meio privilegiado, engradecem os seus respectivos papéis e introduzem um nível de qualidade na narrativa que torna a complexa moral mais facilmente permeável.

O mérito é também repartido com o realizador Jacques Audiard que, embora os desnecessários atalhos, raramente perde ideia da sua mensagem principal. A sua realização resiste à emoção fácil. Na verdade, procura mais vezes criar um certo mistério e remeter para o espectador a procura de alguma perturbação. Tanto o é que parece esquecer-se de concluir rigorosamente a sua história: fá-lo de forma repentina, inopinadamente, entregando ao espectador a função de moldar a sua conclusão e a sua interpretação da catarse. Talvez não seja uma conclusão propriamente justa. Aliás, todo o último acto parece apressado e descontextualizado. Porém, se o espectador se permitir algum trabalho, retirará benefício moral da narrativa de Ferrugem e Osso.  

CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas


Trailer:



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