domingo, 21 de dezembro de 2014

Filme: O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos (2014)

Na sua última viagem pela Terra-Média, Peter Jackson encerra em grande a sua trilogia. Com emoção e acção, O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos põe o perfeito ponto final na mais incontornável saga.

Depois de recuperar a Montanha Solitária, a Companhia de Thorin Oakenshield (Richard Armitage) assiste à destruição de Laketown pelo terrível Smaug. Sem a ameaça do dragão, a Montanha é alvo do desejo de muitos. Nas sombras de Dol Guldur, Sauron tenta o seu regresso com a conquista da Montanha. Legiões de orcs caminham para a batalha. No meio do conflito, Bilbo Baggins (Martin Freeman) poderá ser a resposta.

O que começou como projecto de Guillermo del Toro e acabou nas mãos de Peter Jackson, então produtor, após problemas de financiamento da MGM, acaba de forma intensa e explosiva num capítulo final que, partindo imediatamente para a acção com o ataque impiedoso de Smaug à vila pesqueira Laketown, encerra a aventura de Bilbo Baggins e conclui o prelúdio para a trilogia O Senhor dos Anéis. Se os capítulos anteriores sofreram de alguma maneira da necessidade de viagem de A para B, A Batalha dos Cinco Exércitos não precisa de partir para lado nenhum. Todas as peças estão no sítio certo. A companhia de Thorin Oakenshiled recuperou a Montanha Solitária e a sua missão é defendê-la. A imensa fortuna da Montanha que o dragão guardou durante tantos anos todos atrai.

Tomado pela ganância e pela vontade de ser Rei Debaixo da Montanha, Thorin precisa da Arkenstone, o Coração da Montanha que oficializará o seu poder. A progressiva alienação de Thorin enquanto a batalha eclode no exterior, perante o olhar incrédulo de Bilbo Baggins, é provavelmente o ponto mais deslumbrante do filme. Peter Jackson agarra nestes momentos para dar a alma que por vezes tem faltado à Companhia. No fim da trilogia perpetua a ideia de que muitos dos anões permanecem desconhecidos para a audiência, provavelmente sem uma única fala nas quase nove horas de interacção. Críticas sobejam sobre a decisão de Jackson para dividir um curto livro numa adaptação cinematográfica tão grande. Como um todo, a intenção de Jackson é compreensível. Talvez não fosse possível dar tanta ênfase ao mundo de Tolkien de outra maneira, às suas inúmeras personagens, criaturas e acontecimentos.

A principal critica a esta segunda caminha de Jackson pela Terra-Média tem sido o uso de CGI em grande escala. A Batalha dos Cinco Exércitos não é imune a esta tendência, mais ainda quando a ênfase do filme se concentra em torno de uma grande batalha com tão variadas criaturas em tão elevado ritmo. O efeito é particularmente visível, e inconveniente, quando o elfo Legolas entra em modo de combate, desafiando até a gravidade com a sua agilidade. Embora Jackson não use tantos efeitos práticos como anteriormente, particularmente na trilogia original, o neozelandês é contudo capaz de introduzir momentos de emoção e sinceridade, pautados pela distinta música de Howard Shore, entre as sequências que mais fazem abrir os olhos. É esta capacidade de Jackson que tem tornado o seu trabalho especial e único. Neste aspecto, A Batalha dos Cinco Exércitos superioriza-se aos seus dois antecessores.

Se dúvidas ainda houvessem de que Martin Freeman era o melhor Bilbo que poderia haver, o derradeiro filme da trilogia faz dissipá-las. Freeman encarna Bilbo com toda a humildade, acuidade e humor com que Tolkien criou e escreveu a personagem. Richard Armitage tem um efeito semelhante no papel de Thorin. Aliás, qualquer cena entra Freeman e Armitage faz remeter quase automaticamente para as palavras de Tolkien. Não poderia haver melhor elogio do que este para as suas interpretações. Por qualquer excesso que faça, Jackson nunca cometeu um erro no casting do seu elenco. Ian McKellen impressiona pela última vez enquanto o eterno Gandalf. Talvez nunca tenha havido uma personagem assim. Talvez nunca venha a haver. A Batalha dos Cinco Exércitos permite ainda um canto do cisne a Christopher Lee, Cate Blanchett, Hugo Weaving, Orlando Bloom e Ian Holm nos seus icónicos papéis, bem como ajuda a tornar memoráveis as recentes personagens de Evangeline Lilly, Luke Evans, Lee Pace e Aidan Turner. A inesperada surpresa do filme é discutivelmente Ryan Gage enquanto Alfrid, personagem criada pelos argumentistas que traz ao filme o elemento cómico e relaxante.                       


Terminando a sua jornada com a derradeira visita e olhar sobre o Shire e Bag End no seu epílogo, O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos liga esta trilogia à trilogia O Senhor dos Anéis da forma mais emotiva. Sabendo o que advém na linha temporal da Terra-Média, a sensação é avassaladora. A Terra-Média cinematográfica está provavelmente encerrada. Peter Jackson trouxe ao ecrã a saga mais vívida e fantástica do cinema. Agora, tudo o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado… e revisitar é sempre uma hipótese, numa imersiva longa maratona de quase um dia. Valentes não faltarão.

CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas


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sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Filme: Boyhood – Momentos de uma Vida (2014)

Meticulosamente realizado durante um período de doze anos pela incrível dedicação de Richard Linklater, Boyhood – Momentos de uma Vida é um coming-of-age como nunca visto. Um dos filmes do ano.

Mason Evans Jr. (Ellar Coltrane) e a sua irmã Samantha (Lorelei Linklater) vivem com a sua mãe Olivia (Patricia Arquette) no Texas. O pai, Mason Sr. (Ethan Hawke), separado de Olivia, vive e trabalha no Alasca. Sempre à procura do melhor para os seus filhos e para si mesma, Olivia anda de cidade em cidade, de trabalho em trabalho e até de casamento em casamento enquanto Mason Jr. e Samantha, sempre com um contacto próximo do seu pai, aprendem, crescem e tomam decisões.

O compromisso de Richard Linklater com uma produção de nada menos do que doze anos é notável. Por si só, este facto é suficiente para encher Boyhood – Momentos de uma Vida de obrigatoriedade de visualização. Afinal, o espectador não está meramente a acompanhar uma cópia dos vários anos por que a narrativa passa, reconstituídos por valores de produção precisos e louváveis; está literalmente a visualizá-los tal como eram, com os seus estilos, as suas modas, os seus pensamentos, uma janela para o passado raramente tão fidedigna, pois é ela própria parte desse tempo. Para alguém próximo da geração de Mason Evans Jr., o efeito é ainda mais avassalador. As experiências por que Mason passa, os jogos com que se entretém, as roupas que veste e até mesmo o lançamento mundial de um capítulo de Harry Potter, em livro, extravasam a fronteira cinematográfica para trazer à tona verdadeiras memórias.  

A incontornável beleza de Boyhood – Momentos de uma Vida não se fica, todavia, pelo período da sua produção. A narrativa que Richard Linklater desenvolveu e adaptou às circunstâncias do seu elenco e da sociedade em constante mudança é por si só meritória e digna das mais sinceras reflexões sociais no cinema. Nunca se viu nada assim. A história de Boyhood – Momentos de uma Vida é tão terra-a-terra, tão próxima das nossas próprias vivências e experiências, dos momentos bons e dos momentos maus. É impressionante a quantidade de pessoas com que alguém contacta num período de doze anos, que entram e saem de uma vida, essenciais a dado momento e completamente esquecidas noutro; no caso particular de um jovem na fase ascendente da sua adolescência, o efeito é ainda mais destroçador. Entristece e reconforta ao mesmo tempo. Tudo muda, nada é constante. A vida é isto mesmo. Momentos.

Ellar Coltrane pode ter demorado doze anos para ter a sua grande estreia – não contabilizando a participação fugaz em Geração Fast Food (também de Richard Linklater) e em três outras pequenas produções –, mas fá-la em grande. A forma como Manson Jr. literalmente cresce diante dos nossos olhos – a montagem de Sandra Adair executa a transição de planos (e de idades) de forma brilhante – torna a sua personagem única. Ellar Coltrane é provavelmente a revelação do ano. Talvez ninguém tenha evoluído tanto no cinema diante dos nossos olhos como o jovem actor; a sua capacidade e a sua qualidade de representação evoluem e amadurecem do início ao fim do filme, conforme também Ellar Coltrane cresce e amadurece. Importante ainda destacar as dedicações de Ethan Hawke e de Patricia Arquette, a última em particular pela personagem fidedigna que interpreta, em papéis soltos com (certamente) muitas oportunidades de improvisação. E ainda a de Lorelei Linklater, filha do realizador, no papel da irmã de Manson Jr. 


Richard Linklater pode muito perfeitamente ter em mãos o filme da sua carreira. Qualquer galardão que esteja no seu caminho será perfeitamente justificado, como o será para o próprio filme, realizado de forma independente e sem compromissos, com risco e coragem. Boyhood – Momentos de uma Vida mostra que a cega dedicação à arte cinematográfica não está perdida. Existe, continua a ser nutrida e produz resultados assombrosos. No caso de Boyhood – Momentos de uma Vida, prova-nos que uma história concretizada na medida e no tempo certos é potencialmente a mais cabal e a mais próxima do espectador e das suas vivências.

CLASSIFICAÇÃO: 5 em 5 estrelas


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sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Filme: The Hunger Games: A Revolta – Parte 1 (2014)

Embora continue a ser um mostruário predilecto para o talento de Jennifer Lawrence, eleve o tom político e lance adequadamente os dados para a última visita a Panem, The Hunger Games: A Revolta – Parte 1 não escapa à sensação de não-evento de uma narrativa desnecessariamente partida em dois.

Após os eventos dos últimos Jogos da Fome, que Katniss (Jennifer Lawrence) terminou de forma abrupta com um disparo certeiro do seu arco, o tributo do Distrito 12 encontra-se no afinal vivo e de pé Distrito 13 sob a guarida e as ordens da Presidente Coin (Julianne Moore). A revolta está mais perto do que nunca, mas há ainda um trabalho de persuadimento a fazer aos restantes distritos. Símbolo encarnado do Mimo-Gaio, Katniss torna-se no rosto da campanha pela revolta. Do lado do Capitólio, Peeta (Josh Hutcherson) é a voz do Presidente Snow (Donald Sutherland) e da sua política de repressão.

Considerando o historial dos congéneres – em género e em público-alvo – Harry Potter e Twilight, a decisão de dividir o terceiro e último capítulo da saga de Suzanne Collins em dois filmes dificilmente se revelaria uma escolha artisticamente justificada. The Hunger Games: A Revolta – Parte 1 é um filme a dois tempos, a dois ritmos e mesmo a duas narrativas para uma história a duas metades, resultando quase invariavelmente numa sensação de um não-acontecimento. Durante cerca de duas horas, numa ambiência adequadamente sombria e contida, Francis Lawrence cria quase um jogo de gato e rato entre o evento e o não-evento, entre a iminente revolta e a delongadora propaganda política. A importância visual e moral do Mimo-Gaio personificado por Katniss Everdeen para a instigação da revolução parece efectivamente fundamentada, mas a resposta quase estritamente propagandista do Capitólio não parece coerente para um órgão soberano que nunca hesitou em antagonizar jovens numa arena até à morte.

O tom político em The Hunger Games: A Revolta – Parte 1 é maior do que nunca. Se por um lado o Presidente Snow, do Capitólio, é alguém versado na política e nos seus mecanismos, a Presidente Coin apresenta amadorismo e dificuldade em converter a sua posição de poder numa revolta forte e vitoriosa. Snow, compreendendo a limitação da sua adversária e o poder do Mimo-Gaio, dirige o seu ataque à principal ameaça ao seu poder e estado das coisas: Katniss. Terrivelmente fragilizada e perturbada pelos dois Jogos da Fome, Snow desfere um golpe terrível no espírito de Katniss com a conversão de Peeta, capturado nos acontecimentos finais de The Hunger Games: Em Chamas, à vida e ao estilo do Capitólio. O efeito é devastador para Katniss. Provavelmente inconsciente para o fenómeno, é usada como um peão no jogo de xadrez que o Capitólio e o Distrito 13 disputam lentamente. Se por um lado Katniss apela de forma improvisada à insurreição directamente de um campo de batalha em chamas, Peeta apela à paz e ao fim do conflito de forma calculista numa sala tranquila e acolhedora, espicaçado pelo sempre promotor Caesar Flickerman. Durante esta Parte 1 do capítulo final, a revolta amiúde anunciada reduz-se quase singularmente a esta troca de propagandas.

O último acto introduz por fim uma demonstração de força das duas fracções do conflito, ainda que pequena e visualmente restringida. Sem a arena e com o constrangimento de uma primeira metade de uma narrativa, Francis Lawrence aposta todos os seus trunfos neste acto. Um bombardeamento ao Distrito 13 é quiçá a melhor sequência que Francis Lawrence constrói até ao momento na saga, colocando o espectador quase em pânico durante o desenrolar do acontecimento, sequência que parece realizar com algum alívio. Francis Lawrence é um realizador radiante por poder contar com Jennifer Lawrence. Num filme que é mais contemplativo do que outra coisa e em que não é possível desconstruir mais as personagens para além daquilo que a audiência já conhece, Jennifer Lawrence consegue trazer elementos novos a Katniss. A sua actuação apenas é suficiente para manter o espectador focado no grande ecrã, mesmo que verdadeiramente não esteja a acontecer muita coisa. The Hunger Games é tanto a muleta para o estrelato de Jennifer Lawrence como a actriz é uma muleta para o sucesso mundial da saga.    


Apesar da sensação de não-evento, The Hunger Games: A Revolta – Parte 1 preludia adequadamente o último filme. É um prelúdio que, sacrificando-se para conter toda a condescendência, toda a dragagem e represada propaganda, faz antecipar um desfecho mais em força e com todo o deslumbramento devido, um em que todas as personagens podem brilhar pela última vez (com destaque para a última interpretação de Philip Seymour Hoffman) e em que o conflito de Panem ficará finalmente resolvido.

CLASSIFICAÇÃO: 3 em 5 estrelas


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sábado, 8 de novembro de 2014

Filme: Interstellar (2014)

Tecnicamente assombroso e a espaços inigualável, Interstellar é um filme ambicioso, de grande escala, que continua o estado de graça de Christopher Nolan, mesmo que não atinga todo o potencial prometido.  

Num futuro próximo, a população humana passa por grandes apertos. A fome abunda, pragas espraiam-se e o ar é cada vez mais irrespirável. Quando certo dia Cooper (Matthew McConaughey), um antigo piloto da NASA que agora se dedica à agricultura, dá ouvidos à sua filha Murph sobre fenómenos estranhos que acontecem no seu quarto, Cooper descobre uma missão secreta dos seus antigos empregadores para salvar a humanidade, uma que o levará a atravessar o espaço e a enfrentar inesperados perigos e sacrifícios.

Christopher Nolan provou e continua a provar que não gosta de histórias fáceis. Se se excluir a trilogia O Cavaleiro das Trevas onde Nolan se rende de certa forma ao facilitismo da banda-desenhada – não poderia ser de outra forma –, os projectos originais do realizador britânico, de Memento a A Origem, têm sempre presente o desafio racional de obrigar a pensar na narrativa, nas suas premissas, nos seus desenvolvimentos e nos seus nem sempre óbvios desfechos. A capacidade de Nolan para fazer o espectador sair do cinema com a cabeça à roda, embrulhada em questões, é ímpar no panorama cinematográfico actual. Concorde-se ou discorde-se com parte ou mesmo com todo o filme, nenhum espectador se exonera totalmente do exercício de reflexão que a narrativa exige, por vezes se calhar até contra a sua própria mensagem e ideia. Como não poderia deixar de ser, Interstellar rege-se pelas regras deste habitual enquadramento de Nolan.

Inspirada nas teorias do físico Kip Thorne, que trabalhou como consultor científico e como produtor executivo no filme, a história de Interstellar coloca a humanidade no seu limite, num futuro próximo em que os recursos se esgotaram e a humanidade se definha. Lutando diariamente pela sobrevivência e pela continuidade, Cooper e a sua filha Murph deparam-se com uma anomalia gravitacional, um fantasma para Murph, que os leva a descobrir uma missão secreta da NASA para encontrar novos mundos passíveis de colonizar e de assim salvar a humanidade. Embora o terrível sacrifício de deixar a sua família para trás e correndo o risco de não voltar a vê-la, Cooper aceita liderar a missão pelo simples instinto de protecção dos seus filhos. O amor de Cooper pela sua família, e por Murph em particular, é o grande motor do filme. Numa narrativa que se preenche de ciência e de fenómenos incríveis, por vezes numa toada expositiva difícil de acompanhar, é uma decisão corajosa que o principal elemento seja o mais inquantificável de todos. Algures no infindável e escuro espaço ou num planeta estranho e inóspito, a salvação da humanidade não reside na ciência. Não verdadeiramente. Reside na força quase inconcebível que um pai tem para proteger os seus filhos e nos esforços impossíveis que corporizará para assegurá-lo.

Por seu pecado, Christopher Nolan nem sempre lida da melhor forma com esta componente menos científica do seu argumento, que assina com o seu irmão Jonathan Nolan. Por vezes passa a ideia de algum desconforto neste tema e por vezes trata o material de uma forma mais expositiva e menos visual do que o desejável. Vale-o o elenco seguro e extremamente competente capaz de passar as mensagens mais corriqueiras e estranhas de um modo natural. Quaisquer que sejam as suas falhas, Nolan compensa-as com panoramas e sequências visuais e sonoras perfeitamente deslumbrantes – a música de Hans Zimmer acompanha Interstellar com o habitual rigor do compositor alemão. Na técnica, poucos chegam perto de Nolan na actualidade. As inspirações de filmes como 2001: Odisseia no Espaço são evidentes. Nolan não se acanha desta comparação e planos existem que constituem uma verdadeira homenagem ao clássico de Kubrick. A forma como a narrativa tenta atingir algo de metafísico, como alude sempre ao transcendente, é outro exemplo, embora aqui com numa nuance diferente e eventualmente menos inteligível. Quiçá o foco na ciência, nas suas terminologias e formulações teóricas se amplifique em excesso. O truque para entranhar e usufruir da melhor forma de Interstellar, pelo menos na sua primeira visualização, é não considerar demasiado a ciência, a sua lógica e as suas incongruências. Tal deve ficar para depois, após a visualização, no tal momento em que Nolan faz o espectador sair do cinema com a cabeça à roda, embrulhada.

Interstellar é o filme mais ambicioso de Christopher Nolan, mas não é, discutivelmente, o seu melhor ou a sua definidora obra-prima. Essa ainda estará para vir. Como se apresenta, Interstellar coloca-se lado a lado com a obra do realizador britânico, obra que até agora ainda não conheceu nenhum passo em falso. Talvez nunca venha a conhecer.

CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas


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sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Filme: Fúria (2014)

Adequadamente baço, visual e explosivo e liderado pelas actuações de Brad Pitt e de Logan Lerman, Fúria introduz outro destacável capítulo cinematográfico na 2ª Guerra Mundial apoiado na valentia, na camaradagem e na adaptação.

A 2ª Guerra Mundial está muito perto do fim. As forças aliadas conquistam terreno na inimiga Alemanha, mas a resistência ainda é forte e atroz. Don "Wardaddy" Collier (Brad Pitt) comanda o tanque Fury, um dos mais destacados do Regimento 66. O regimento de Fury é composto por Boyd "Bible" Swan (Shia LaBeouf), Grady "Coon-Ass" Travis (Jon Bernthal) e Trini "Gordo" Garcia (Michael Peña). Quando um quinto membro do regimento morre em combate, o recém-chegado Norman Ellison (Logan Lerman) é destacado para Fury. A guerra que Norman pensava relatar não é a guerra que vai efectivamente viver.

Escrito e realizado por David Ayer, Fúria retrata a 2ª Guerra Mundial, ou pelo menos o seu furioso epílogo, com um ritmo diferente do que seria de esperar, tomando tempo para os seus momentos de reflexão moral e religiosa e para os seus planos vívidos e visualmente esviscerais. A história não é verídica. Resulta da criatividade de David Ayer, mas não sobejam muitas dúvidas sobre a credibilidade e o realismo desta representação crua. Em certos momentos, talvez a narrativa exponha os seus intervenientes a sortes improváveis, mas David Ayer nunca passa totalmente o risco da probabilidade ou se tenta a evidentes mecanismos Deus ex machina.    

No confinado tanque baptizado Fury, David Ayer joga com personalidades distintas. Cruza a religião com a descrença religiosa, a experiência na guerra com a inexperiência, a velhice com a juventude. O regimento de Wardaddy está profundamente marcado pela longa guerra, de África à Alemanha; marcado não apenas nas por vezes horripilantes cicatrizes físicas, mas também na mente, no alento e na crença. Tão marcados pelas atrocidades, pelo vermelho do sangue e pelo laranja das chamas, o regimento parece já indiferente ao horror, insensível à dor e desinteressado na ocasional injustiça. É com este cenário pouco animador e intolerante que o recém-chegado Norman se depara.

Há pouco mais do que oito semanas na guerra e inicialmente destacado para dactilografar, Norman vê-se inserido num grupo que não o aceita e que não lhe reconhece qualquer capacidade ou qualidade. Norman é praxado de forma cruel e constante pelos seus companheiros. Chega a ser forçado a liquidar um inimigo que se rendera contra a sua vontade e instinto de justiça. O tratamento que Norman recebe parece exagerado, mas a hostilização persistente por parte dos seus companheiros ilumina-se de uma intenção válida: a de desenvolver rapidamente em Norman as sensações de indiferença, insensibilidade e desinteresse que se espraiaram no regimento durante anos de conflito e que os foi mantendo a salvo. Afinal, o tanque só funciona se todos remarem no mesmo sentido, e só todos sobreviverão se forem capazes de cumprir o seu papel, quão desumano seja ou possa vir a ser. 

David Ayer não se coíbe a mostrar esta desumanidade, toda a desumanidade da guerra. Os momentos de confrontos são exímios e tensos, numa sucessão de planos abertos e fechados que aumenta o perigo sobre o regimento de Fury. As cores atenuadas e a música expectante acentuam a devastação provocada e a pouco esperança com que todos os intervenientes parecem compactuar. David Ayer eleva o ritmo e a acção no acto final, onde filma uma admirável demonstração de tácticas de guerra. O realizador americano não se esquiva por um momento da sua visão bruta e autêntica do confronto. A tensão de cortar à faca quando Wadarddy e Norman se hospedam sem licença na casa de duas alemãs, ou a conformidade entre o plano inicial e o plano final do filme, com o tanque no centro da desolação, são testemunhos desta rigorosa compostura.

Brad Pitt volta a interpretar um papel no contexto da 2ª Guerra Mundial, mas nem por isso o seu trabalho se torna menos original e desinspirado. O seu Wardaddy prova-se um homem de aparência forte, de liderança nata; embora o semblante sério e pesado, talvez sinta e padeça mais do que qualquer outro à sua volta. A certa altura no acto final, pela forma como captura o momento, David Ayer parece sugerir uma relação entre Wardaddy e Bible superior à mera amizade e ao companheirismo. David Ayer não dedica mais qualquer instante a esta percepção, a esclarecê-la ou aprofundá-la. E bem. É natural; não é forçado. No elenco de suporte a Brad Pitt, Logan Lerman destaca-se no papel Norman. A sua personagem é a que mais transformações sofre durante Fúria e a que carrega o fardo de ser os olhos da audiência. Logan Lerman mostra-se à altura do desafio. O restante elenco compõe-se bem, incorporando qualidades e peculiaridades em personagens de outra forma contagiadas por algum corriqueirismo.  

Fúria não é o melhor trabalho cinematográfico que tem como pano de fundo a 2ª Guerra Mundial. Há obras incontornáveis no género que são difíceis de alcançar. Mas Fúria conquista meritoriamente o seu espaço. Conquista com uma premissa muito simples, destacada no discurso consternador e vaticinador de Wardaddy: as ideias são pacíficas, mas a história é violenta.

 CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas


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sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Filme: Frank (2014)

Cómico, alucinado e musicalmente deslumbrante, Frank trás uma distinta introspecção às transformações e aos métodos de uma banda de música, uma liderada por uma hipnotizante personagem sublimemente interpretada por Michael Fassbender.  

Certo dia, enquanto caminha à procura de inspiração para uma música, Jon (Domhnall Gleeson) encontra-se com uma banda desconhecida que acaba de perder um dos seus elementos para o concerto dessa noite. Espontaneamente, Jon oferece-se para preencher a vaga. Frank (Michael Fassbender), o estranho líder da banda, aceita. Mais tarde, após se terem separado e ficado sem contacto, Frank convida Jon para integrar a banda no retiro onde gravarão o novo álbum e onde Jon terá uma das experiências mais estranhas da sua vida.

Maioritariamente inspirada na carreira musical de Chris Sievey e no seu alter-ego Frank Sidebottom, mas também em figuras como as de Daniel Johnston e de Captain Beefheart, a deliciosamente cómica, sinistra e surreal história de Frank transporta a audiência pelas contemplações de uma banda alternativa com a inflexão de uma experiência tão bizarra quanto a genialmente descoordenada música de Frank e da sua impronunciável banda Soronprfbs. Através dos olhos e das considerações de Jon, a audiência conhece a cada rasgo de demência a brilhante loucura de Frank, da sua vincada personalidade, dos seus estranhíssimos hábitos. Aprende que Frank, debaixo do seu fato de genialidade e da sua cabeçorra de plástico, vive perturbado, porventura preso à infância, embrenhado num modo e numa visão da vida e das coisas diferente. Tão diferente que gera sobre si um inescapável magnetismo que atrai o desejo, a necessidade de escapismo e de preferência de todos à sua volta. Recém-chegado e pouco integrado na banda, Jon sente este magnetismo como mais ninguém, rapidamente se tornando dependente da aprovação e do favoritismo, sensação que o espectador, compenetrado nos maneirismos e na originalidade musical de Frank, se permite partilhar.  

Jon, todavia, não consegue efectivar-se como um membro de facto. Embora confinado a um espaço reduzido e isolado durante meses em Vetno, na Irlanda, Jon não se desliga do mundo virtual, do mundo social onde procura crescer, afamar-se e acreditar-se. Não se torna no transeunte que começara por ser, que todos os membros da banda parecem ter começado por ser. Convencido da qualidade de Frank e do potencial dos Soronprfbs, Jon documenta cada passo do interregno criativo da banda. A crítica do realizador Lenny Abrahamson a uma audiência cada vez menos participativa e exageradamente focada na documentação virtual da sua vida e das suas experiências fica bem vincada. Em vez de se integrar verdadeiramente na banda e no seu estilo, Jon vive para as suas actualizações virtuais, para os tweets, para os hashtags e para as visualizações. A documentação de Jon do trabalho e do processo criativo dos Soronprfbs leva-o eventualmente a receber um convite para uma actuação no festival alternativo South by Southwest. Jon vibra, sem se aperceber que os Soronprfbs se calhar não existem para actuações em grandes espaços, mas para pequenos e escuros bares, quiçá de reputação duvidosa, onde a audiência se compõe (mal) por ouvintes ocasionais e acidentais. Sem se aperceber que a fragilidade a ligar os Soronprfbs é como os fios entrelaçados que compõem uma tela velha; tal como com o quadro que resulta nessa tela, a banda é para ver (e viver) sem se lhe tocar.   

Quem diria que Michael Fassbender tinha uma voz tão predisposta para a interpretação musical. A sua voz torna o realismo e a credibilidade de Frank mais robustos. Debaixo da cabeçorra de Frank, Michael Fassbender oferece uma interpretação hipnotizante, descontraída e divertida. A expressividade que coloca nos seus diálogos faz com que a cabeçorra que lhe cobre o rosto pareça, embora imutável, sempre diferente. Domhnall Gleeson continua a marcar pontos na sua carreira em ascensão com mais uma interpretação sólida, encontrando espaço para se destacar entre a performance excêntrica de Michael Fassbender e a actuação rigorosa de Maggie Gyllenhaal, que surge como o elemento mais desequilibrado, mais desestabilizador e mais autêntico da banda. Filmadas com som ao vivo, as fantásticas e tresloucadas actuações dos Soronprfbs provam a dedicação do elenco aos seus respectivos papéis e a conivência com a visão de Lenny Abrahamson para a invulgar narrativa. A qualidade de Frank resulta da entrega e da crença de cada um deles com o resultado final, mesmo que o fim, não o adequado desfecho, mas o receptáculo para ele, desbarate a alucinação conjunta. Mas até este corriqueirismo lhe fica bem, pois como Frank, o músico, coloca a dado instante em mais uma das suas inspiradas observações, caras normais também são estranhas. E Frank é afortunadamente estranho quando é normal e normal quando é estranho.   

 CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas


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quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Filme: Em Parte Incerta (2014)

Misterioso, carregado de suspense e com interpretações de elevado calibre, Em Parte Incerta não se demora em incertezas para se assumir como um dos filmes do ano e um dos melhores thrillers de David Fincher. Rosamund Pike é verdadeiramente incrível.

No dia do seu quinto aniversário de casamento, Nick Dunne (Bem Affleck) regressa a casa do seu passeio matinal para descobrir a sua esposa Amy (Rosamun Pike) desaparecida. Os sinais de luta em casa levam Nick a contactar a polícia e a iniciar um movimento local pela busca de Amy. Quando pormenores do seu passado e da sua relação começam a surgir, o papel de Nick e de Amy no misterioso desaparecimento pode ser completamente diferente do que as pistas levam a acreditar.

Ninguém trabalha o suspense como David Fincher na actualidade. Esta ideia mais ou menos consensual ganhara força com Millennium 1 – Os Homens Que Odeiam as Mulheres e agora parece inteiramente certa. Com um argumento adaptado do romance Gone Girl pelo seu próprio autor, Gillian Flynn, Em Parte Incerta é um thriller brilhante, meticulosamente filmado com planos, música e montagem exemplares. David Fincher faz aquilo em que é melhor, mestre de facto, e supera-se a cada registo. Talvez peque precisamente pela sua menor propensão para o arrojo e para o diferente, mas quando continua a exibir-se em tão bom plano no seu, face à expressão, ex-líbris cinematográfico, o único desejo é que continue no seu caminho por muito tempo.

A abordagem de David Fincher em Em Parte Incerta mostra um realizador confiante no seu trabalho e no efeito que causa na sua audiência. O ritmo do filme pode dar a sensação de uma obra narrativamente parada, por vezes estagnada, sem uma resolução à vista. Esta artimanha que o realizador americano emprega, mais perceptível no seu primeiro acto exploratório, serve para iludir e confundir, baralhando vilão com vítima de forma relaxada enquanto trabalha personagens e revela a pele de Amy, uma das personagens mais fascinantes dos últimos tempos. Amy é o centro deste jogo de gato e rato. Há demasiado tempo que não surgia no grande ecrã uma personagem feminina com a sua sofisticação e complexidade. Desaparecida e nunca ida, Amy coloca a audiência em sentido, do seu lado e contra si, manipulando dentro e fora do ecrã a bel-prazer (e à satisfação de David Fincher).

À frente das câmaras, Ben Affleck apresenta-se como um actor completamente redimido, preparado para papéis de elevada carga dramática, na linha das já excelentes indicações de Argo e A Cidade. Todavia, é Rosamund Pike quem sobressai inequivocamente com a espécie de interpretação que marca incontornavelmente uma carreira. Amy é uma personagem revestida de complexidade, de uma astúcia assustadora e diabólica. Ver Rosamund Pike desfolhar lentamente a personalidade misteriosa de Amy é um regalo visual e mental que poderia prolongar-se por horas. Para a época de prémios que se avizinha, Rosamund Pike coloca-se arrojadamente na pole position.

Uma das componentes que sobressai em Em Parte Incerta é a crítica aos meios de comunicação social, à opinião pública e aos seus viciados e incorrectos opinion makers. David Fincher deixa clara a sua posição crítica e quiçá o seu desabafo pessoal. Manipulando o espectador pelo fio condutor e pela câmara censuradora, transformando-o num opinion maker da narrativa, força-o a uma curiosa introspecção, a questionar-se se também assume precoce e erradamente e se cria falsos juízos de valor. Em Parte Incerta partilha a sensação frustrante do desconhecimento e a sensação ainda mais frustrante de, tendo o conhecimento, não poder partilhá-lo com quem pode agir a partir dele.

Em Parte Incerta coloca ainda o conceito de amor, pelo menos na óptica de Amy, numa perspectiva desafiante, pertinentemente indagando o quanto alguém muda ou é mudado pela outra parte, que expectativas se defraudam e que revolta se cria. É uma visão crua de David Fincher que, tal como nos seus trabalhos anteriores, não se perfuma de encantos, mas que importa ponderar. E permitir inquietar enquanto o próximo momento de puro suspense de David Fincher não chega e a desconcertante música da dupla Trent Reznor e Atticus Ross se faz escutar.

CLASSIFICAÇÃO: 4,5 em 5 estrelas


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quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Filme: Guardiões da Galáxia (2014)

Recheado de humor, de surpreendentes cenários e de um quinteto fora de série liderado por Chris Pratt e Bradley Cooper, Guardiões da Galáxia emerge de todas as dúvidas e suspeições como um dos blockbusters mais fortes do Verão e da Marvel. “I am Groot” veio para ficar.

Quando a sua mãe morre na sua infância, Peter Quill (Chris Pratt) é raptado por seres alienígenas de uma galáxia distante. Peter cresce para se tornar Star-Lord, um temerário fora-da-lei conhecido e procurado por toda a galáxia. Quando é encarregue de recuperar uma esfera misteriosa que pode alterar o equilíbrio do universo, Peter junta-se a Gamora (Zoe Saldana), Rocket (Bradley Cooper), Drax (Dave Bautista) e Groot (Vin Diesel) para desfazer os planos maquiavélicos de Ronan (Lee Pace) e Thanos (Josh Brolin). 

Não obstante o sucesso de bilheteira (e a maioria de crítica) de Homem de Ferro, de Thor, de Capitão América e de Os Vingadores, a aposta dos estúdios da Marvel em Guardiões da Galáxia, adaptação cinematográfica de um conjunto de banda desenhada menos conhecido, é potencialmente de risco, capaz de se tornar na pedra no sapato do mundo cinematográfico que o estúdio tem vindo a construir paulatinamente desde 2008. O conceito desta aposta exige mais capacidade de imaginação e predisposição para o elemento fantástico que qualquer entrada anterior. Basta constatar a existência de uma árvore andante e falante (embora o seu vocabulário se reduza a três simples palavras) e de um guaxinim eloquente e rude, além do sem-número de planetas, locais e raças que abundam este projecto, para compreender o nível de abstracção exigido. Tudo parece alinhar-se para transformar Guardiões da Galáxia no derradeiro tiro no pé… mas não podia ser uma suspeição mais longe da verdade.

Incrivelmente divertido, carregado de acção e de personagens memoráveis, Guardiões da Galáxia é a maior vitória da Marvel até ao momento. Se este conceito funcionou, qualquer um a que se proponha no futuro funcionará. O sucesso desta aposta reside totalmente na diversidade e peculiaridade de cada um dos cinco elementos que compõem os correctamente intitulados Guardiões. A narrativa não é particularmente intricada ou inteligente; na verdade, segue o mesmo padrão básico dos restantes títulos da Marvel: um desafio herculano que exige o total sacrifício dos seus protagonistas e que culmina num capítulo final ofuscado por acção excessiva e por actos altruístas exageradamente óbvios. Guardiões da Galáxia não foge a esta fórmula, que amargamente parece cada vez mais obrigatória e imutável.

Felizmente, existe Peter Quill, Gamora, Drax, Groot e, estrela da companhia, Rocket para fazer esquecer a corriqueira narrativa e a ausência de um vilão suficiente e aceitavelmente ameaçador. Mais do que a sua capacidade para produzir planos bonitos e cheios de contagiante energia, James Gunn deve congratular-se pela espontânea e notável união de personagens com idiossincrasias tão próprias, tão fora do comum, que captura primeiramente no argumento que assina com Nicole Perlman e posteriormente com a sua imparável câmara. Guardiões da Galáxia é forte quando o foco de James Gunn permanece no quinteto e fraco quando, por necessidades narrativas pedestres, foge a ele. Thanos pode muito bem ser o grande vilão do mundo cinematográfico da Marvel e Ronan, num escalão inferior, um inimigo poderoso; todavia, a interlocução entre ambos não desperta tanto interesse quanto o filme quer levar a crer. Nesse aspecto, se se libertasse das exigências marvelianas, Guardiões da Galáxia poderia perfeitamente ser mais dirigido para comédia e menos para acção, mantendo a triunfante aposta no humor e na electrizante banda sonora dos anos 80.

No que deve ser o ponto de viragem definitivo da sua carreira, Chris Pratt assume-se como uma estrela, lembrando um jovem Harrison Ford em Guerra das Estrelas. Aliás, e considerando o enquadramento galáctico, Peter Quill parece justamente inspirado em Han Solo, esse outro rebelde e fora-da-lei que também se fazia acompanhar pelos companheiros mais improváveis. Se Chris Pratt dá a cara e o corpo ao manifesto, Bradley Cooper apregoa a sua qualidade entregando a voz ao admirável, inconcebível, Rocket. Zoe Saldana enquanto Gamora, Dave Bautista enquanto Drax e Vin Diesel enquanto Groot não brilham tanto quanto o duo anterior, mas impressionam o suficiente para deixar um encanto duradouro, particularmente Vin Diesel com as mil e uma formas diferentes de proferir “I am Groot”. O restante elenco apesenta-se em bom plano, com destaque para Lee Pace (e a sua fabulosa dicção) e John C. Reilly.  


Se alguma lamentação existe relativamente a Guardiões da Galáxia, para além da narrativa e da exígua vilanagem, é a infeliz pertença ao restante mundo cinematográfico da Marvel. O potencial desta adaptação enquanto um início e um fim em si mesma, ao estilo da saga Guerra das Estrelas, é francamente superior. Guardiões da Galáxia não precisa de cruzar-se com Homem de Ferro, Thor, Capitão América ou Os Vingadores. Está num grau acima, numa galáxia distante, rica, colorida e aventurosa o bastante - e mais ainda - para que continue a existir sozinho, sem os encontros futuros já anunciados. Leva a dizer “I am Groot”.

CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas


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quarta-feira, 30 de julho de 2014

Filme: O Homem Mais Procurado (2014)

Meticuloso e imersivo, O Homem Mais Procurado é um magnífico thriller, belissimamente filmado. Com excelentes interpretações, o destaque recai num dos derradeiros trabalhos de Philip Seymour Hoffman, novamente brilhante e inspirador, prova do enorme vazio que deixa na sétima arte.

Issa Karpov (Grigoriy Dobrygin), filho de pai russo e mãe tchetchena, entra ilegalmente na Alemanha através do porto de Hamburgo. Issa pretende reclamar a avolumada herança do seu pai deixada no banco de Tommy Brue (Willem Dafoe) e conta com a ajuda da advogada Annabel Richter (Rachel McAdams). A chegada de Issa, considerado terrorista pelos serviços secretos, precipita a investigação alemã de Günther Bachmann (Philip Seymour Hoffman) e a investigação norte-americana de Martha Sullivan (Robin Wright) sobre um suspeito financiador de terrorismo.

Adaptado do romance homónimo do mestre de espionagem John le Carré, O Homem Mais Procurado é um cuidadoso thriller envolvido numa ambiência construída com um clima de vigilância, desconfiança, intriga e mistério. A filmagem sub-reptícia do realizador Anton Corbijn, com ângulos de esguelha e uma câmara inquieta, introduz no espectador a sensação de que é parte integrante da investigação de Günther, um elemento silencioso, um testemunho observante da operação, dos elementos e das vontades em jogo. A sensação de visualizar O Homem Mais Procurado, no seu apropriado ritmo paulatino, é uma de um acto de binge-watching, quando se visualizam seguidamente, sem pausas, todos os episódios de uma série televisiva. Em tal acto, o espectador encontra-se cônscio de que levará tempo para a conclusão da narrativa e de todas as suas ramificações. Todavia, perfeitamente embrenhado na história e no estilo, emprega-o a na expectativa de uma caminhada imersiva e entusiasmante. Nesta maneira, O Homem Mais Procurado podia durar horas sem importunar.

Não dura. Tem obviamente uma duração cinematograficamente adequada. A forma como agarra e embala o espectador na sua viagem por um Hamburgo mais clandestino e sombrio, mais pobre e inseguro, sob os tons da parca iluminação nocturna e da música de suspense, é encorajadora. O interesse é pelo jogo de poderes à vista entre pessoas, convicções e agências governamentais, mesmo quando teoricamente aliadas. Embora, como deixa claro no derradeiro plano do filme, Anton Corbijn coloque o espectador no banco do passageiro, de simples e neutra testemunha, é inevitavelmente estabelecida uma fidelidade com Günther e com a sua investigação. É esta fracção da complexa rede de espionagem que o espectador quer ver triunfar, mesmo que os destinos de Issa e de Annabel, do outro lado do puzzle, possam ficar suspensos no ar. Quando a tensão se acumula e atinge o auge no acto final, todos os destinos e todas as paradas em jogo, a operação de Günther é aquela que ultimamente se quer ver vencedora. Faz o coração bater mais rápido ante a tensão crescente e o tropeção que se sente iminente.    

Talvez parte desta inflexão para o lado de Günther se deva a Philip Seymour Hoffman. Aliás, é totalmente mérito da sua qualidade, maior e mais longa do que a própria vida. A brilhante interpretação de Seymour Hoffman torna a sua morte precoce mais profunda. Discutivelmente, nunca Seymour Hoffman se apresentou mal no grande ecrã. É [na sétima arte, permanece imortal] um actor de método incomparável, um talento de uma geração, absolutamente confiante das suas capacidades interpretativas. Mesmo quando a narrativa de O Homem Mais Procurado parece estagnar, Seymour Hoffman eleva o material à sua disposição e inspira o elenco a magníficas interpretações. Seymour Hoffman nunca deixa nada ao acaso. Enquanto os seus companheiros no grande ecrã procuram um ar aprumado e arranjado, Seymour Hoffman, com a maior das naturalidades, ajeita as calças, coça-se, limpa uma orelha. Uma demonstração de naturalidade tão superior que eleva Seymour Hoffman de um interpretador para um vivedor.

A resolução de O Homem Mais Procurado pode deixar alguma água na boca, mas a forma tentativamente realista que Anton Corbijn emprega não podia permitir outro desfecho que não um em aparente in medias res. Operações secretas como a de Günther nunca são um fim em si mesmas, independentemente dos seus sucessos ou falhanços. Há sempre mais algum jogador em jogo e o fim de uma operação serve apenas para dar lugar ao começo de outra. O Homem Mais Procurado acompanha a operação de Günther enquanto o espião tem controlo dos acontecimentos; quando já não está nas suas mãos, já não interessa sinceramente, nem para a narrativa nem para o espectador. Qualquer outra tentativa de desfecho poderia ter arruinado o filme; aliás, como acaba, parece eternizar Günther no seu acto, o que não é senão a homenagem correcta ao seu intérprete, assim celebrado. 

CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas


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quinta-feira, 24 de julho de 2014

Filme: A Emigrante (2014)

A história de luta e de desespero de A Emigrante é notável. Todavia, a direcção de James Gray, bem como o sofrível argumento, destroem qualquer hipótese de tornar A Emigrante num trabalho excepcional, por maior que o esforço do trio Cotillard- Phoenix-Renner. 

No auge da emigração para os Estados Unidos da América, Ewa Cybulska (Marion Cotillard), polaca de nascença, é uma das incontáveis pessoas que procuram uma nova oportunidade de vida do outro lado do Atlântico. Todavia, a chegada de Ewa à América é tudo mesmo fácil. Quando a sua irmã é impedida de entrar no país por suspeitas de tuberculose e quando a dignidade de Ewa é colocada em causa, Ewa recorre à ajuda de Bruno Weiss (Joaquin Phoenix), e mais tarde à de Emil (Jeremy Renner), para libertar a sua irmã. No entanto, o caminho de Ewa não será fácil, nem decoroso.

Na teoria, A Emigrante tem todos os ingredientes para se tornar num filme de época destacável. O elenco é de luxo e de provas dadas, enquanto a história do sacrifício de uma irmã pela outra, incessantemente à procura do sonho americano, da segurança e da oportunidade nos anos áureos da imigração norte-americana parece cativante. Onde é que A Emigrante falha? Embora o ritmo demorado, a música exangue e o foco incerto sejam razões suficientes para hipotecar a qualidade de qualquer filme, o mais grave e visível problema de A Emigrante reside na forma amorfa como James Gray trata a narrativa, que assina com Ric Menello, estabelecendo compromissos emocionais e morais demasiado elevados sem permitir o indispensável espaço para a criação de elos efectivos com as personagens, nomeadamente com a Ewa. Basta apontar qualquer momento de maior tensão em A Emigrante e reconhecer a ausência de gravidade para compreender como James Gray falha redondamente neste capítulo.

A montagem que James Gray permite no seu filme, por sua inteira decisão ou não, obsta momentos essenciais para a ligação emocional à personagem, ocultando factos relevantes para a história e para a luta de Ewa. Logo no início de A Emigrante, o espectador é confrontado com a decisão pouco convencional de progredir sem grande sustentáculo no desenvolvimento da personagem quando Ewa, para conseguir o dinheiro que garante os melhores cuidados de saúde à sua irmã, se torna numa dançarina no teatro de Bruno. Neste momento, em que Ewa se mostra simultaneamente frágil e determinada, James Gray dá um salto na narrativa, mostrando Ewa já enquanto dançarina em palco. O mesmo sucede quando Ewa toma o caminho da prostituição. Tais momentos são essenciais para transformar Ewa e para tornar o seu sofrimento, a sua luta e a sua redenção mais poderosos aos olhos do espectador, pelo que a sua ausência, mais do que manifesta, é devastadora.

A desestabilizar A Emigrante do seu propósito estão também os diálogos sofríveis nos quais nem o próprio elenco parece depositar confiança. Embora laudável o esforço de Marion Cotillard, de Joaquin Phoenix e de Jeremy Renner, não deixa de se manifestar desconforto em cada interpretação, na forma como planos moralmente carregados são compactuados com discursos pobres e vulgares. Olhando para o produto final, é difícil de explicar a presença de Marion Cotillard, de Joaquin Phoenix e de Jeremy Renner. Talvez tenham sido aliciados com a promessa do potencial de A Emigrante e com o currículo do seu realizador, o mesmo aliciamento que erroneamente levará o espectador ao seu visionamento. Não está aqui implicado que o espectador reprovará inteiramente o filme, cujo tem de facto os seus méritos (a caracterização da época, por exemplo, mostra-se impecável), mas garantidamente não obterá a absorção cinematográfica que contava ter, uma que, não fosse a forma teatralizada que James Gray escolhe para transmitir a sua visão, poderia naturalmente ter.   


 CLASSIFICAÇÃO: 2,5 em 5 estrelas


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sexta-feira, 18 de julho de 2014

Filme: Planeta dos Macacos: A Revolta (2014)

Matt Reeves assume a herança de Rupert Wyatt sem reservas e, melhorando sobre o já convincente Planeta dos Macacos: A Origem em todos os aspectos, cria em Planeta dos Macacos: A Revolta uma película memorável comandada pela tour de force de Andy Serkis enquanto o carismático Caesar.

Dez anos após a disseminação do que passou a ser designado por vírus símio, a população humana encontra-se quase completamente exterminada. Em São Francisco, onde a propagação do vírus teve origem num laboratório, Malcolm (Jason Clarke) e Dreyfus (Gary Oldman) lideram uma pequena comunidade de sobreviventes. Quando é traçado um plano para trazer independência energética à comunidade, Malcolm aventura-se na floresta de Muir Woods para reactivar uma barragem. Malcolm dá de caras com o grupo símio inteligente (resultante do mesmo vírus) que habita o território, liderado pelo chimpanzé Caesar (Andy Serkis). Caesar mostra-se disponível para ajudar os humanos, mas nem todos na sua tribo, e o bonobo Koba (Toby Kebbell) em particular, concordam com a sua abordagem.  

Depois do sucesso inesperado em 2011 de Planeta dos Macacos: A Origem, que tentou o remake que Tim Burton não conseguiu em 2001 com Planeta dos Macacos, Planeta dos Macacos: A Revolta procura ser a rara sequela que melhora sobre o seu predecessor e lança definitivamente uma saga com pernas para andar. Em todos e mais alguns aspectos, Planeta dos Macacos está mais vivo do que nunca. Se, ao contrário de Tim Burton, Rupert Wyatt compreendeu que a força da saga original, iniciada cinematograficamente em 1968 com a adaptação do romance de Pierre Boulle, se concentrava na raça símia e menos na raça humana, Matt Reeves vai mais longe, entregando o protagonismo por inteiro àqueles que, no fim de contas, dão o nome e o mote à saga. O êxito de Matt Reeves começa por aqui.   

A narrativa de Planeta dos Macacos: A Revolta não divide humanos e símios em duas fracções epistemologicamente claras. Ambas têm razões para as suas acções, para as suas confianças e desconfianças. Ambas querem ter o direito ao seu espaço. A trégua existe; a coabitação tem lugar. Na sua essência, quando a disputa começa, não acontece por uma questão meramente territorial, mas por algo tão basilar como a família, a organização social e a lealdade. Caesar e Malcolm procuram a paz, enquanto Koba e Dreyfus procuram o conflito. A narrativa sugere que nenhum lado é melhor que o outro, que nenhum tem mais direito à terra que o outro. A solução passa efectivamente pela coexistência, pela harmonia; mas é uma solução que esbarrará nos interesses próprios, de um lado e do outro.

Sempre que a tribo de Caesar figura no grande ecrã, Planeta dos Macacos: A Revolta fica riquíssimo de informação, de emoção, de espanto. A forma como a tribo se organizou socialmente e como desenvolveu a sua própria linguagem após os eventos de Planeta dos Macacos: A Origem é nada menos que extraordinária. O efeito perde-se quando o plano desce sobre o que resta em São Francisco da raça humana. Quiçá o filme dispensaria completamente esta interacção. Talvez seja o passo definitivo que falta dar na saga, a novidade que Matt Reeves trará num filme sequente. É um testemunho da indubitável qualidade de Andy Serkis, da Weta e de toda a produção que tal sensação fique a pairar no ar. Toda a emotividade de Andy Serkis transpira através de Caesar, mas nunca deixa Caesar de ser o chimpanzé que deve ser. Andy Serkis domina completamente a arte da motion performance. A força da sua interpretação contagia o restante elenco símio, com Toby Kebbell enquanto o maquiavélico Koba em destaque.

Os efeitos visuais estão de tal forma amadurecidos neste filme que se mesclam incrível e facilmente com os planos da natureza, com a luz e com a sombra, com os objectos móveis e imóveis. O primeiro plano do filme, num close-up de Caesar, demonstra de um zás todas as potencialidades. O pêlo dos símios parece palpável, os movimentos são credíveis. Os estúdios da Weta provam estar, uma vez mais, na vanguarda da tecnologia. Importa que haja, do outro lado, um realizador disposto a arriscar e a puxar as barreiras do improvável. Matt Reeves é esse realizador. O seu trabalho não se deixa restringir por aquilo que pode ou não ser possível através da montion performance. A sua câmara filma a acção com a confiança plena de que o efeito visual será concretizável e que o alto nível de realismo não será colocado em causa. Exemplo da confiança de Matt Reeves é um plano a 360º capturado em cima de um taque, com o caos total instalado à volta, mesclando facilmente efeitos práticos com efeitos visuais. Poderia não ter resultado, mas Matt Reeves nunca parece ter duvidado.   

Por mais que espectaculares, os planos de acção não são o trunfo do filme. O trunfo reside na emoção que Matt Reeves nunca dispensa. Em momentos tão simples mas incrivelmente comovedores e poderosos como o plano em que o filho mais novo de Caesar, ainda criança, sobe ao ombro de Ellie, esposa de Malcolm. É este momento, a par de planos semelhantes, envolvidos na sublime composição de Michael Giacchino, que coloca Planeta dos Macacos: A Revolta noutro patamar, inalcançável para tantos blockbusters: num patamar em que efeitos visuais se colocam quase exclusivamente à disposição da interpretação, da emoção e da narrativa. Do início ao estilo de 2001: Odisseia no Espaço ao fim ao estilo de Star Wars Episódio IV: Uma Nova Esperança, Planeta dos Macacos: A Revolta perfila-se entre os melhores registos de ficção científica. O futuro só pode ser auspicioso.

CLASSIFICAÇÃO: 4,5 em 5 estrelas


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quinta-feira, 10 de julho de 2014

Filme: Agentes Universitários (2014)

Embora num setting diferente, mas com uma narrativa semelhante, Agentes Universitários é uma cópia de carbono quase perfeita de Agentes Secundários, o que não impede humor e diversão q.b. A inovação é escassa, mas a dupla Jonah Hill e Channing Tatum compensa satisfatoriamente. 

Após o sucesso da sua missão à paisana numa escola do secundário, Jenko (Channing Tatum) e Schmidt (Jonah Hill) pensam que as suas carreiras na polícia só podem ascender. Quando a sua mais recente missão falha redondamente, Jenko e Schmidt regressam a Jump Street e são enviados numa nova missão à paisana, desta feita para a universidade, onde Jenko se torna num popular jogador de futebol americano e Schmidt se envolve com uma jovem artista. 

Assim como o seu predecessor, Agentes Universitários caminha uma linha ténue entre a comédia inteligente e a comédia ao desbarato. Em Agente Secundários, a narrativa caminhava sobre esta linha com equilíbrio, combinando o humor de circunstância com o humor físico da acção alienada. Para o melhor e para o pior, Agentes Universitários repete tal-qualmente a fórmula, sem qualquer adição ou subtracção de maior, mudando apenas o cenário do seu ensaio. O secundário ficou para trás e Jenko e Schmidt, após mais uma missão inicial desastrada, voltam à taskforce Jump Street – agora no número 22 (o número 21 voltou para os seus antigos donos e o número 23 pode ficar vago em breve) – e são enviados à paisana para a universidade para investigar uma nova e perigosa droga que faz furor entre os estudantes. 

A partir deste momento, Agentes Secundários parece querer transformar-se num American Pie refinado, repescando toda a folia do género universitário mas sem nunca enveredar pelos habituais carnavais desgovernados. Afinal, a narrativa continua a tratar-se, na mais ínfima das suas essências, de uma investigação policial. É esta investigação policial que faz com que o filme mantenha os pés assentes na terra quando parece prestes a descambar ravina abaixo, quando por momentos mais longos do que o que seria saudável o espectador se esquece completamente da premissa da história e se questiona, por exemplo, se Jenko poderá tornar-se numa estrela de futebol, ou se Schmidt poderá desenvolver uma relação com Maya. Agentes Universitários não é, todavia, totalmente alheio a este efeito. Emprega-o, aliás, para proporcionar a situação mais hilariante e memorável de todo o filme, envolvendo Schmidt e Maya - uma situação que coloca toda a audiência em polvoroso.

Enquanto esta ocasião de total hilaridade, pelo seu carácter de surpresa, revigora o visionamento de Agentes Universitários, outras, pelo seu carácter de repetição, desgastam-no rapidamente. Exemplo desta dicotomia é a piada recorrente sobre a relação entre Jenko e Schmidt. O diálogo e a forma como interagem com terceiros quer apontar ao espectador a ideia de que os dois agentes são um casal, parceiros no sentido estrito. A primeira vez em que tal é sugerido é admissivelmente engraçado, mas a sua desnecessária e por vezes inoportuna recorrência desgastam velozmente o seu efeito cómico. Por outro lado, a ausência de um antagonista sério e credível coloca pressão excessiva no resultado do desenvolvimento da relação entre os dois agentes. É certo que o conceito de Agentes Universitários e de Agentes Secundários vive da camaradagem entre os seus protagonistas; todavia, nada impediria a existência de uma força contrária presente e ameaçadora o suficiente que colocasse pressão e pedisse sagacidade e soluções hilariantes. A forma como, no acto final, o real narcotraficante cai do céu é um testemunho desta lacuna.

A química entre Jonah Hill e Channing Tatum continua a dar provas do valor da nova geração de comediantes de Hollywood. Hill tem estado pelo papel dramático, enquanto Tatum se perdura no papel de acção. Agentes Universitários mostra que a veia cómica é forte tanto em Hill como em Tatum e que se mantém um trunfo para as suas carreiras em crescendo. Nota para a interpretação de Ice Cube, com uma prestação muito mais segura que a anterior. A realização da dupla Phil Lord e Christopher Miller segue as linhas orientadoras de Agentes Secundários, não inovando muito mais do que já tinham alcançado anteriormente, notando-se porém, particularmente no último acto, os frutos de um orçamento superior. Não será, contudo, pelo orçamento superior que Agentes Universitários atrairá o seu público. Fá-lo-á com comédia e os bons momentos de descontracção… e, nesse sentido, não obstante as suas falhas, o filme garante que o prometido é devido.  

CLASSIFICAÇÃO: 3,5 em 5 estrelas


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quarta-feira, 2 de julho de 2014

Filme: Draft Day: Dia D (2014)

Embora recupere bem do seu forte apoio nas noções de futebol americano na parte inicial, Draft Day: Dia D nunca se afirma completamente como um drama nas suas próprias condições e termos, condicionado pelo alcance curto da sua insuficiente premissa.  

Sonny Weaver Jr. (Kevin Costner) é o Director Geral dos Cleveland Browns. Quando o dia do sorteio de novatos da NFL, a Liga Nacional de Futebol Americano, chega, Sonny tem que escolher entre a tradição e a novidade para fazer nascer a sua visão para o clube, mesmo que tal signifique abdicar da sua posição na estrutura.

A premissa de Draft Day: Dia D não apelará muito ao espectador português, não habituado ao futebol norte-americano e ainda menos aos seus complicados processos de selecção e de transferência de jogadores. Nestes processos inclui-se o amplamente publicitado Draft Day, um dia longo em que os melhores jogadores das universidades americanas têm a possibilidade de ingressar no futebol profissional, directamente numa das equipas de topo. A condição-mor é que estes aspirantes a estrelas não podem escolher a equipa de destino, ficando a aguardar o resultado de um sorteio que literalmente dita a sua carreira. Por seu lado, as equipas profissionais podem apenas escolher os seus rookies por uma ordem de sorteio pré-determinada. Naturalmente, quanto mais acima no sorteio maiores as hipóteses de ficar com as melhores promessas do futebol norte-americano.

Draft Day: Dia D gira em torno deste evento, apresentando uma versão fictícia da equipa Cleveland Browns à procura de escapar à pesada sombra das conquistas passadas. Guiada pelo Director Geral Sonny Weaver Jr., que procura fugir à reputação do seu recentemente falecido pai, os Cleveland Browns podem apenas escolher o seu rookie em sétimo lugar. Tudo muda quanto Sonny recebe uma proposta inesperada dos Seattle Seahawks para uma troca no sorteio, uma proposta com riscos que poderá dar aos Cleveland Browns Bo Callahan, o rookie mais bem cotado dos últimos tempos. Contrariando a vontade de toda a equipa, Sonny aceita a proposta dos Seattle Seahawks; todavia, quando começa a analisar Bo Callahan mais detalhadamente, Sonny começa a hesitar. A sua escolha, sob muita pressão, fica em dúvida até ao derradeiro instante.    

A parte inicial de Draft Day: Dia D, mais carregada na linguagem e na cultura futebolística norte-americana, é difícil de acompanhar. O filme quase que se perde nesta tão importante fase primordial. Conforme a narrativa se despe do seu desnecessário “complicómetro” e começa a expor bem as posições e as vontades de todos os seus intervenientes, o filme recobra-se, torna-se mais vivo e mais apelativo, embora fique sempre muito aquém de ser tornar num drama rico e relevante. Parte do recobro explica-se nas questões familiares de Sonny que se intercalam com as questões desportivas. Sonny deixa de ser apenas um Director Geral com um pensamento analítico e fica claro que a sua escolha será completamente emocional, assente no seu gut feeling. Kevin Costner desempenha esta faceta com mais à-vontade, redimindo-se de algum desencaixe no carácter autoritário da sua personagem. 


Tecnicamente, a realização de Ivan Reitman é segura. As transições entre planos e a sobreposição de personagens e cenários é uma escolha curiosa e conseguida. Ivan Reitman não consegue, contudo, revitalizar suficientemente o argumento de Rajiv Joseph e de Scott Rothman. Draft Day: Dia D nunca se torna no thriller que às vezes parece querer tornar-se; seria como um gato querer correr como um tigre. À parte de um momento de inspiração na recta final do filme, em que o plano e o génio de Sonny Weaver Jr. se revela, a narrativa é fracamente incisiva, quiçá não por falta de talento dos seus responsáveis mas por verdadeiramente não haver muito mais para dizer sobre um sorteio de futebol. Nem Draft Day: Dia D é um mau filme, nem a sua realização ou as suas actuações são más; simplesmente, a história não é atractiva ou memorável o suficiente. Falta sumo. Ou melhor, falta fruta para fazer sumo.   

CLASSIFICAÇÃO: 2,5 em 5 estrelas


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