Os
Miseráveis sobrevive à conta da história de redenção de Jean Valjean, mas
quase tudo à volta encontra-se desprovido de congruência e sofre de deficiente
construção afectiva entre personagens e espectador. Jackman e Hathaway
entregam-se de corpo e alma.
Jean Valjean (Hugh Jackman) consegue a
liberdade condicional do seu guarda prisional, Javert (Russel Crowe), após dezanove
anos de penitência pelo roubo de um pão. A miséria impele Valjean a cometer
roubo numa igreja, onde um bispo lhe concede abrigo. Novamente capturado,
Valjean é perdoado pelo bispo e decide dar a volta à sua vida. Anos mais tarde,
sob outro nome, tendo fugido à sua obrigação de se apresentar periodicamente às
autoridades, Valjean volta a confrontar-se com Javert, que continua à sua
procura. Na sequência, Valjean causa o despedimento e a desgraça de uma
funcionária da sua fábrica, Fantine (Anne Hathaway), e enfrenta outro caminho de
redenção.
Os Miseráveis não deixa qualquer dúvida
quanto ao seu carácter musical, o que lhe concede benesses nas sequências mais climáticas,
mas deixa a desejar, e empurra para um marasmo enervante, nas sequências mais
corriqueiras. Os diálogos maioritariamente musicais, embora bem compostos e
ensaiados, não deixam de causar a impressão de uma excessiva teatralização que
não assenta completamente no grande ecrã, onde os instantes silenciosos se
exigem para as necessárias apreensões e para o estabelecimento do elo emocional
entre as personagens e o espectador, para a compreensão dos seus conflitos e da
sua jornada moral. Os Miseráveis
contém uma variedade de arquétipos da sociedade, tão presentes na sociedade
francesa do século XIX como na sociedade contemporânea. Temas como a justiça (colectiva
e divina), a redenção e a paridade atravessam toda a longa história e afectam
as diversas personagens de um modo fatídico. Mas quando o elo emocional entre
as vidas retratadas e o espectador falha tanto como aqui, a moral fica pelo
caminho e a redenção é apenas imaginária.
Chega
efectivamente a ser frustrante a forma como tantas relevantes problemáticas são
levantadas e depois são rapidamente descartadas em detrimento de um romance que
nunca é correctamente estabelecido ou cria importância no espectador. É ainda
mais frustrante que trágicas decisões de certas personagens tenham por base o
mesmo romance, ou falta dele, e que o arranjo consequente exija do espectador
uma comiseração fácil que mal teve alicerce. Talvez tal disposição funcionasse
no teatro, considerando as características da arte, mas nesta, quando a
exigência não tem cabeça, resulta num trabalho fraco e cobarde. Não fosse a
jornada fidedigna de Jean Valjean, e o curto mas valoroso acto de Fantine, não
haveria tábua de salvação. Felizmente para Os
Miseráveis, o argumento trabalha bem essas duas personagens (que são, no
fim de contas, as mais importantes da obra homónima de Victor Hugo) e ressalva-se
minimamente.
Ajudam também
as interpretações cruas e carregadas de comoção de Jackman e Hathaway, que além
disso, e particularmente a última, são capazes de usar a voz sem medo de falhanço
ou de desafinação (quando acontece, é mais um reflexo da pesada carga emotiva
do que da inexistência de talento musical). O mesmo já não se aplica a Crowe:
ninguém duvida da sua capacidade de actuação, e até é decente no filme, mas não
é possível perdoar a inexistência de uma voz aceitável. E quanto a vozes diz
respeito, o melhor desempenho pertence a Samantha Barks. Deve ser também
realçado o contributo de Helena Bonham Carter e de Sacha Baron Cohen, cujo timing cómico traz o necessário subterfúgio
quando o que está à volta já não agarra.
A decisão de
filmar as actuações musicais ao vivo é definitivamente arriscada, mas Tom
Hooper consegue equilibrar com uma edição apurada e com momentos de apoteose
interessantes. A fotografia é bonita, composta numa tela de cores mais básica,
os cenários confundem-se entre o real e o teatral, e a música é adequadamente
harmoniosa ou tensa. A duração é excessiva, mesmo que a história seja longa. No
final, Os Miseráveis deixa um sabor
amargo e a ideia do que de tão bem poderia ter feito se tivesse tido um foco
mais rígido e legitimado. Não é a história da obra de Victor Hugo que está em
causa, ou sequer a sua adaptação musical ao teatro. É tão-somente o falhanço de
Tom Hooper e do seu grupo de argumentistas em compreender e transmitir a pertinência
moral e de optar pela estilização em vez da substância.
CLASSIFICAÇÃO: 3 em 5 estrelas
Site Oficial: http://www.lesmiserablesfilm.com/splashpage/
Trailer:
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