quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Filme: Bestas do Sul Selvagem (2013)


Bestas do Sul Selvagem é um trabalho ímpar, deslumbrante e desassossegador. Colocando a condição humana sob uma lupa escrupulosa, analisa matérias relevantes e transmite uma extraordinária lição de vida. Uma viagem maravilhosa.

Hushpuppy (Quvenzhané Wallis), com seis anos, vive com o seu pai Wink (Dwight Henry) na Banheira, uma região pantanosa no sul do Luisiana. Enquanto aprende que a Banheira pode um dia desaparecer, com a subida do nível das águas, Hushpuppy presencia um comportamento progressivamente alienado do seu pai, fruto do álcool e de doença gradual. Certo dia, acontece uma terrível tempestade que coloca a sobrevivência da Banheira em causa e que compromete a relação entre pai e filha.

A condição humana de sobrevivência encontra-se exposta em Bestas do Sul Selvagem na forma mais sórdida, despudorada, onde a decadência humana abunda e a inocência espanta. Na Banheira, terra de exilados, necessitados, isolada do mundo industrial e da sociedade consumista, a vida assume uma forma tribal, de subsistência, onde os mais velhos se encontram enrugados com a carga da vida e das suas vicissitudes e os mais novos se encontram incrivelmente ingénuos, cegos à maldade da vida, do mundo e dos homens. A intersecção de tão distantes e dissemelhantes gerações cria na Banheira uma interacção maravilhosa, se não perturbante, entre as acções desequilibradas dos mais velhos, desmoralizados, e as interrogações morais dos mais novos, purificados, em que o ex-líbris se encontra na relação entre Wink e Hushpuppy.

Hushpuppy, seis anos de idade, é o epíteto da inocência, da humildade e da bondade, que vê o Homem como mais um elemento do grande panorama da natureza e do universo, nem mais acima nem mais abaixo dos restantes seres vivos. Desligada das pretensões humanas de superioridade, compreende melhor que os crescidos à sua volta o círculo da vida e o lugar inferior que ocupa perante a força da natureza e a inevitabilidade da sua fúria. Tal fúria arrasa eventualmente a Banheira, sob a forma figurada de extintos auroques, majestosos, que Hushpuppy enfrenta corajosamente para mostrar que aceita o seu ínfimo lugar na roda-viva. Mas antes de Hushpuppy se dar a tal arrojada confrontação, começa a compreender o significado da vida, da emancipação e da insubordinação, quando o seu pai, alcoólico recorrente, começa a dar sinais de prolongada doença – no que deve ser uma demonstração de anemia falciforme –, ausentando-se do nada ou tomando questionáveis atitudes. Wink recusa-se a parecer fraco perante a sua filha, cuja quer ver forte e autónoma, máscula, mesmo que à força, ao isolamento e ao insulto, preparando-a para a sua definitiva ausência. Tais atitudes colocam-no perto de perder Hushpuppy, ainda fascinada com a mãe, que procura; mas Wink, na alienação da sua bebedeira e da sua doença, encontra-se ciente do que está a criar – um fascinante acto de fingindo desinteresse para o fortalecimento da sua filha.  
  
As mensagens em Bestas do Sul Selvagem são tantas e tão pertinentes que se torna impraticável não sentir ou impressionar com pelo menos algumas delas, se não com todas. A história de Wink e de Hushpuppy é a motriz do filme, é certo, mas todas as outras, presenciadas pelos olhos curiosos de Hushpuppy, acrescentam ainda mais valor à premissa inicial. A pobreza é um tal notável caso, recriada de maneira impiedosa, que choca e exige ponderação, sobretudo quando do seio de semelhante meio surge singela felicidade. Afinal, como Hushpuppy explica no prólogo da história, a Banheira tem mais feriados e celebrações que qualquer outro lugar no mundo. Outras questões sociais impõem-se, como o direito à propriedade e o dever do poder governamental em zelar, mesmo que em contrariedade com o primeiro direito, pela segurança e saúde dos seus habitantes.     

Eximiamente adaptado da peça Juicy and Delicious pela própria autora, Lucy ALibar, e filmado de forma singela e incansável, imaginativa, com um olhar sorrateiro e curioso, focado e desfocado, pelo estreante Benh Zeitlin, Bestas do Sul Selvagem é um exercício marcante e maravilhoso, rotulado por uma actuação soberba da jovem promessa, incrível revelação, Quvenzhané Wallis. Nunca é um fardo simples agarrar as rédeas de toda uma narrativa, mas Wallis fá-lo de uma maneira natural, encantando com a sua voz adorável e com as suas expressividades meditabundas. Também Dwight Henry desempenha maravilhosamente o seu papel, perturbando e comovendo conforme os acontecimentos. Nomeado para quatro Óscares® (Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Actriz e Melhor Argumento Adaptado), Bestas do Sul Selvagem adopta a selvageria da humanidade para provar que mesmo que dentro de cada um haja a esperança de superação, a singeleza da vida não é um mal, é um caminho, que molda e enche de virtudes.   

CLASSIFICAÇÃO: 5 em 5 estrelas


Trailer:



Nomeada para Melhor Crítica de Cinema nos TCN Blog Awards 2013

1 comentário:

  1. Pessoalmente, deixando a parte técnica de lado, estou torcendo muito para que estes filme ganhe o Oscar, mesmo sabendo que Argo e Lincoln tem mais chances.

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