sábado, 12 de janeiro de 2013

Filme: Guia para um Final Feliz (2013)


Pontuado por interpretações excelentes, Guia para um Final Feliz é um notável drama romântico, com deliciosas e inteligentes doses de comédia, que faz muito mais para além de mostrar a possibilidade de um final feliz: mostra a necessidade de transpor os monstros de cada um e de aceitar a ajuda do próximo.  

Pat (Bradley Cooper) é um indivíduo com bipolaridade que acaba de ser libertado de uma instituição psiquiátrica depois de cumprir um internamento de 8 meses por causa de um acesso de raiva e violência. Enquanto tenta conciliar o seu regresso a casa com o bem-estar da sua família, Pat procura redimir-se e recuperar o seu casamento. Quando o seu caminho se cruza com o de Tiffany (Jennifer Lawrence), Pat poderá ter um aliado inesperado.  

Guia para um Final Feliz extravasa as barreiras tipicamente rígidas dos dramas e comédias românticas para se transformar numa relevante história sobre o conflito pessoal, o conflito familiar e o conflito amoroso. Pat é a motriz por detrás de cada conflito, agarrado a um passado perturbante que quer ultrapassar, mas que não consegue esquecer. Os seus conflitos entrelaçam-se e ganham mais incerteza quando colide com Tiffany, outra pessoa similarmente perturbada. Tiffany, tal como Pat, é alguém resignado e negativo, capaz de explodir a qualquer momento. Enquanto Pat procura libertar-se com optimismo do monstro dentro de si, Tiffany procura restringir-se à probidade com agressividade e mal-estar. A sua história é tão intrinsecamente humana e o seu guia para um final feliz passa pela salvação mútua, pela cura conjunta que requer para um o melhor do outro. Guia para um Final Feliz é também um olhar sobre o vício, a obsessão e o desarranjo familiar consequente. Não é claro o efeito que causaram sobre cada elemento, mas é perceptível que se alastraram de maneiras diferentes por todos, lidadas de modos distintos. A cura é igualmente conjunta, mas o desafio reside na concentração de vontades que são maioritariamente opostas e desinteressadas.

Cooper e Lawrence desempenham brilhantemente os seus papéis, com Lawrence um pequeno degrau acima. Cooper interpreta Pat com ansiedade e controlada instabilidade, com gestos nervosos que antevêem cada um dos seus conflitos e incapacidade de transposição. Lawrence representa Tiffany com mais serenidade, de alguém já versado aos seus problemas e efeitos, mas ganha agressividade momentaneamente e explode a bel-prazer. Lawrence afirma-se cada vez mais como a melhor actriz da sua geração, enquanto Cooper mostra pela primeira vez que há mais no seu trabalho e na sua capacidade expressiva para além da comédia fácil. A performance de Robert De Niro, de um pai viciado e ausente, é também admirável. Depois de uma década de filmes e interpretações pobres, De Niro redime-se e mostra que quem sabe nunca esquece.

A realização de David O. Russell (que já tinha convencido no emocionante The Fighter: Último Round) é particularmente minimalista e contida, sem perder o foco das personagens e dos seus dramas. Não se deixa influir pelas características do género e usa-as sempre em favor da história que quer contar e das inferências morais que pretende incutir. Em particular, os planos onde Cooper e Lawrence se encontram a correr lado a lado, abrangendo tanto o drama como a comédia, exibem perfeitamente o controlo de Russell.

Guia para um Final Feliz, adaptado do romance homónimo de Matthew Quick, foi, no mesmo dia de estreia em Portugal, nomeado para 8 óscares da Academia, incluindo Melhor Actor Principal (Cooper), Actriz Principal (Lawrence), Actor Secundário (De Niro) e Realização (Russell). As nomeações não só valorizam o filme como revitalizam o género e provam que é possível escapar ao marasmo que maioritariamente o determinam. Acima de tudo, Guia para um Final Feliz demonstra que nem sempre é o final em si que importa, mas a jornada para o alcançar.

CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas

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sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Filme: Os Miseráveis (2013)


Os Miseráveis sobrevive à conta da história de redenção de Jean Valjean, mas quase tudo à volta encontra-se desprovido de congruência e sofre de deficiente construção afectiva entre personagens e espectador. Jackman e Hathaway entregam-se de corpo e alma.

Jean Valjean (Hugh Jackman) consegue a liberdade condicional do seu guarda prisional, Javert (Russel Crowe), após dezanove anos de penitência pelo roubo de um pão. A miséria impele Valjean a cometer roubo numa igreja, onde um bispo lhe concede abrigo. Novamente capturado, Valjean é perdoado pelo bispo e decide dar a volta à sua vida. Anos mais tarde, sob outro nome, tendo fugido à sua obrigação de se apresentar periodicamente às autoridades, Valjean volta a confrontar-se com Javert, que continua à sua procura. Na sequência, Valjean causa o despedimento e a desgraça de uma funcionária da sua fábrica, Fantine (Anne Hathaway), e enfrenta outro caminho de redenção.

Os Miseráveis não deixa qualquer dúvida quanto ao seu carácter musical, o que lhe concede benesses nas sequências mais climáticas, mas deixa a desejar, e empurra para um marasmo enervante, nas sequências mais corriqueiras. Os diálogos maioritariamente musicais, embora bem compostos e ensaiados, não deixam de causar a impressão de uma excessiva teatralização que não assenta completamente no grande ecrã, onde os instantes silenciosos se exigem para as necessárias apreensões e para o estabelecimento do elo emocional entre as personagens e o espectador, para a compreensão dos seus conflitos e da sua jornada moral. Os Miseráveis contém uma variedade de arquétipos da sociedade, tão presentes na sociedade francesa do século XIX como na sociedade contemporânea. Temas como a justiça (colectiva e divina), a redenção e a paridade atravessam toda a longa história e afectam as diversas personagens de um modo fatídico. Mas quando o elo emocional entre as vidas retratadas e o espectador falha tanto como aqui, a moral fica pelo caminho e a redenção é apenas imaginária.

Chega efectivamente a ser frustrante a forma como tantas relevantes problemáticas são levantadas e depois são rapidamente descartadas em detrimento de um romance que nunca é correctamente estabelecido ou cria importância no espectador. É ainda mais frustrante que trágicas decisões de certas personagens tenham por base o mesmo romance, ou falta dele, e que o arranjo consequente exija do espectador uma comiseração fácil que mal teve alicerce. Talvez tal disposição funcionasse no teatro, considerando as características da arte, mas nesta, quando a exigência não tem cabeça, resulta num trabalho fraco e cobarde. Não fosse a jornada fidedigna de Jean Valjean, e o curto mas valoroso acto de Fantine, não haveria tábua de salvação. Felizmente para Os Miseráveis, o argumento trabalha bem essas duas personagens (que são, no fim de contas, as mais importantes da obra homónima de Victor Hugo) e ressalva-se minimamente.
     
Ajudam também as interpretações cruas e carregadas de comoção de Jackman e Hathaway, que além disso, e particularmente a última, são capazes de usar a voz sem medo de falhanço ou de desafinação (quando acontece, é mais um reflexo da pesada carga emotiva do que da inexistência de talento musical). O mesmo já não se aplica a Crowe: ninguém duvida da sua capacidade de actuação, e até é decente no filme, mas não é possível perdoar a inexistência de uma voz aceitável. E quanto a vozes diz respeito, o melhor desempenho pertence a Samantha Barks. Deve ser também realçado o contributo de Helena Bonham Carter e de Sacha Baron Cohen, cujo timing cómico traz o necessário subterfúgio quando o que está à volta já não agarra.  

A decisão de filmar as actuações musicais ao vivo é definitivamente arriscada, mas Tom Hooper consegue equilibrar com uma edição apurada e com momentos de apoteose interessantes. A fotografia é bonita, composta numa tela de cores mais básica, os cenários confundem-se entre o real e o teatral, e a música é adequadamente harmoniosa ou tensa. A duração é excessiva, mesmo que a história seja longa. No final, Os Miseráveis deixa um sabor amargo e a ideia do que de tão bem poderia ter feito se tivesse tido um foco mais rígido e legitimado. Não é a história da obra de Victor Hugo que está em causa, ou sequer a sua adaptação musical ao teatro. É tão-somente o falhanço de Tom Hooper e do seu grupo de argumentistas em compreender e transmitir a pertinência moral e de optar pela estilização em vez da substância. 

CLASSIFICAÇÃO: 3 em 5 estrelas

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