quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Filme: A Propósito de Llewyn Davis (2013)

A Propósito de Llewyn Davis é um filme que triunfa na abordagem simplista, na deslumbrante música e na interpretação excepcional de Oscar Isaac no papel principal. Os irmãos Coen têm outro êxito em mãos.

Nos anos 60, em Nova Iorque, Llewyn Davis (Oscar Isaac) procura a sua oportunidade na música folk. Todavia, tocando regularmente no bar Gaslight, Llewyn sente a sua carreira na música a fugir-lhe por entre os dedos e a vida pessoal a complicar-se consideravelmente. De casa em casa, de amigos em amigos, Llewyn vai sobrevivendo às custas da boa vontade de alguns. Certo dia, em contacto com o gato Ulysses, Llewyn pode finalmente ter a sua oportunidade.

A Propósito de Llewyn Davis transporta a audiência até aos anos 60 e, retirando o fulgor que é não raras vezes associado a esta época da história, mergulha-a numa envolvência baça em que abunda uma incógnita melancolia. A fotografia de Bruno Delbonnel, com os seus focos de luzes e de sombras e com a sua palete de cores amortecidas, acentua esta envolvência de forma sublime. A história de Llewyn Davis não é muito diferente destas sensações. Llewyn é alguém que emana melancolia, solidão e vontade parca. Tal como o ambiente que o rodeia, Llewyn parece alguém sem futuro, ou pelo menos alguém sem um futuro particularmente risonho. Com efeito, a jornada de Llewyn em A Propósito de Llewyn Davis é nada menos que desoladora para o seu espírito, ainda que os brilhantes momentos de humor negro de Joel e Ethan Coen como que reduzam no espectador esta ideia de desolação interna. Não restem dúvidas: Llewyn Davis não é uma personagem modelo e a sua história não é inspiradora.

A beleza de A Propósito de Llewyn Davis, pontuada por deslumbrantes momentos musicais, reside no efeito quase fantasista que a jornada de Llewyn parece tomar. A sua viagem para Chicago na companhia de dois desconhecidos – um dos quais fantástica e hilariantemente interpretado por John Goodman – é o momento fulcral em que o espectador se questiona sobre a veracidade de toda a história. Atravessando estradas vazias no meio de nenhures, esta sequência partilha as características de um sonho tido algures, já meio esquecido. Talvez Llewyn nunca faça efectivamente esta viagem; talvez toda a história seja o resultado da sua propensão criativa, reconstituída no seu processo de criação de música. O papel do gato Ulysses, orientado a caminhada e os desafios de Llewyn, parece dar força a esta teoria, quanto não seja pela forma sobrenatural e omnipresente como surge nos instantes em que Llewyn parece mais devastado com a sua falta de sorte. Assim como Ulysses, Llewyn parece ter mais do que uma vida.  

Joel e Ethan Coen, que também assinam o argumento, realizam A Propósito de Llewyn Davis com uma apropriada simplicidade, não obstante a narrativa aparentemente linear se revele intricada e profunda. Os seus planos em ruas ermas, em bares escuros e em corredores irrealmente apertados são demonstrações da sua natural capacidade para pegar no que é simples e criar algo distinto e notável. Oscar Isaac é extraordinário no papel de Llewyn Davis. Confinado a papeis menores, Oscar Isaac tem nesta profunda e enaltecedora interpretação a demonstração completa do seu talento e uma oportunidade para se candidatar a produções maiores. O seu Llewyn Davis, embebido em várias emoções, incapaz de compreender a música alheia, inspira diferentes relações. O elenco de suporte apresenta-se em bom plano, particularmente Carey Mulligan com a sua Jean indisposta, rude e preocupada.  


A música de A Propósito de Llewyn Davis é um elemento substancial da sua essência, outorgando um importante destaque à música folk. Dela sorve toda a narrativa. Na cena inicial do filme, enquanto Llewyn interpreta uma das suas músicas no bar Gaslight, um espectador assiste inteiramente absorvido, um cigarro nos seus lábios queimado quase até ao fim: analogia perfeita para o efeito que A Propósito de Llewyn Davis provoca na sua audiência.  

CLASSIFICAÇÃO: 4,5 em 5 estrelas


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domingo, 15 de dezembro de 2013

Filme: Mandela: Longo Caminho Para a Liberdade (2013)

Mandela: Longo Caminho Para a Liberdade oferece uma visão maioritariamente ampla e a espaços emotiva da vida e da luta contra o apartheid de Nelson Mandela. Idris Elba é nada menos que fantástico na sua interpretação cônscia do eterno líder sul-africano.

Na África do Sul, no final dos anos 50, o regime do apartheid atinge proporções indecorosas. Nelson Mandela (Idris Elba) é um dos líderes do movimento revolucionário do ANC (Congresso Nacional Africano). Quando o movimento toma tácticas guerrilheiras em resposta a atitudes mais violentas do governo sul-africano, Mandela é capturado e condenado a uma pena de prisão perpétua. A sua mulher, Winnie Mandela (Naomie Harris) toma as rédeas do movimento guerrilheiro.  

Mandela: Longo Caminho Para a Liberdade, adaptado por William Nicholson da biografia Long Walk to Freedom do eterno presidente sul-africano, é um filme sem um equilíbrio definido, misturando momentos de beleza cinematográfica com momentos de relativa banalidade. Como um todo, todavia, este trabalho de Justin Chadwick encontra-se acima da média e, ancorado ao valor universal da mensagem de paz de Mandela, agarra com força a atenção e as expectativas do espectador, mesmo que no fim a recompensa emocional fique aquém daquilo que podia e devia ter sido alcançado, e que vinha a ser brilhantemente preparado na primeira metade do filme.

A primeira metade de Mandela: Longo Caminho Para a Liberdade, que se prolonga até ao momento do encarceramento de Nelson Mandela na prisão da Ilha Robben, não dá nenhum passo em falso, agregando uma narrativa fluida (desde a infância de Mandela) com uma montagem inteligente, transumanando Mandela com defeitos a fim de elevar o seu caminho ao estatuto de figura moral. Nesta parte do filme, o lado mais controverso de Mandela, e do seu papel no armamento da ANC durante a fase mais negra do apartheid, é tratado com cuidado e tacto, colocando-o ante momentos de aflição racial progressivamente graves que impactam o seu melhor discernimento. Embora Mandela tome o caminho da luta armada, a sua aversão ao mesmo é sempre observável; Mandela procura a paz e os instantes em que regressa às suas raízes, algures no meio da grande e bela savana, para visitar a sua mãe ou para se casar com Winnie, provam a sua vontade do tamanho do mundo de trazer paz e igualdade.

Quando Mandela é capturado e levado para a Ilha Robben, Mandela: Longo Caminho Para a Liberdade muda de ritmo. Abranda consideravelmente e perde o seu esplendor. Nelson Mandela, não obstante as enormes privações que padece no seu longo e injusto cativeiro, fica mais distante do espectador e a sua viagem moral torna-se mais imperceptível. A forma como Justin Chadwick trabalha esta parte da vida do eterno líder sul-africano provoca a inquietante ideia de que a transformação de Mandela durante o seu cativeiro se deve a algum amolecimento da sua vontade de revolta, como um animal enjaulado que se vê definhar as garras com a oscilação do pêndulo do tempo. Justin Chadwick contrasta seriamente esta transformação com a de Winnie Mandela, que, moldada por uma realidade de punição completamente diferente, parece impelida pelo simples ódio, quiçá dissonante com as suas verdadeiras motivações.

Os momentos que antecedem e se sucedem à libertação de Mandela carecem de alguma solenidade, dependendo demasiado das imagens de arquivo que Justin Chadwick reúne. No entanto, Justin Chadwick recupera nesta recta final algum do esplendor perdido e consegue conduzir um desfecho condigno com o carácter de Nelson Mandela: sentido, tranquilo e bonito; desfecho que carrega consigo uma inflexão emotiva extra pelo falecimento recente do eterno líder sul-africano. Justin Chadwick tem muito que agradecer a Idris Elba pela sua brilhante actuação. Embora exageradamente encorpado para a correcta caracterização de Mandela – problema particularmente mais presente nos anos mais avançados do líder –, Idris Elba faz uma encarnação de personalidade, voz e natureza verdadeiramente espantosa. É uma performance capaz de mudar o rumo da sua carreira. Naomie Harris também traz qualidade ao papel de Winnie, ainda que sobeje a ideia de que a sua personagem é subutilizada e que o seu lugar na narrativa é mal colocado.  


Os valores de produção deste filme estão a bom nível, da vibrante fotografia de Low Crawley – com fantásticos planos da savana sul-africana – ao apropriado guarda-roupa e à música bela e pulsante de Alex Heffes. Mandela: Longo Caminho Para a Liberdade pode não ser a mais perfeita interpretação cinematográfica de Nelson Mandela – o acto intermédio é frustrantemente carente –, mas é uma que vence na celebração a sua vida, das suas conquistas, e que deixa saudades do seu memorável e já eternizado espírito.    

CLASSIFICAÇÃO: 3,5 em 5 estrelas


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quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Filme: O Hobbit: A Desolação de Smaug (2013)

Superior ao seu antecessor, O Hobbit: A Desolação de Smaug é uma aventura carregada de imparável acção pontuada pela bem-vinda introdução de novas (velhas) personagens. Smaug rouba o espectáculo deste que está mais próximo daquilo que é esperado de algo com o rótulo de O Senhor dos Anéis

Após encontrar o Anel na caverna de Gollum e escapar na companhia de Gandalf (Ian McKellen), de Thorin (Richard Armitage) e dos Anões da maré de gnomos, Bilbo Baggins (Martin Freeman) entra na fase mais difícil da sua aventura através dos perigos de Mirkwood, da clandestinidade na Cidade do Lago e do encontro com Smaug, O Terrível (Benedict Cumberbatch), em Erebor. A ameaça espreita a cada passo e a missão da companhia para recuperar Erebor terá mais implicações na Terra-Média e no Mal que se reorganiza do que o hobbit e os anões imaginam.

Deixando para trás o ar mais folgado e divertido do primeiro capítulo da trilogia, O Hobbit: A Desolação de Smaug, o sempre muito importante capítulo intermédio, deixa bem claro desde os minutos iniciais que existe para ser levado mais a sério. Já não há espaço para canções de anões, nem para longas exposições que pouca consequência provam ter; o tom é mais negro e a urgência da missão de Thorin Escudo-de-Carvalho para recuperar o reino perdido de Erebor é mais convincente. Embora esta mudança de ritmo seja bem-vinda e resolva alguns dos problemas do primeiro capítulo, a mudança repentina pode causar inicialmente alguma estranheza e desconforto, sobretudo no encontro da companhia de Bilbo com o mutante Beorn. Ultrapassada esta primeira etapa, O Hobbit: A Desolação Smaug é daí por diante uma aventura imparável, com pouco espaço para respirar até à Montanha Solitária.     

Até Erebor, a companhia de Bilbo enfrenta reveses e encontros inopinados. Nesta fase da jornada, Peter Jackson toma mais liberdades criativas e introduz novas narrativas ao enredo de J.R.R. Tolkien. O primeiro capítulo já tinha mostrado a vontade de Peter Jackson em ligar a trilogia O Hobbit aos eventos da trilogia O Senhor dos Anéis. Essa vontade ganha mais força e dinâmica em O Hobbit: A Desolação de Smaug. Gandalf abandona a companhia para investigar Dol Guldur e desvendar a identidade do sinistro Necromante, enquanto a companhia de Bilbo é perseguida e atacada no seu caminho pelos emissários do Necromante liderados por Azog. Os eventos apresentam-se intricadamente interligados, atribuindo a tal urgência à missão de Thorin.

Os novos cenários são deslumbrantes. A Floresta de Mirkwood é estranha, misteriosa e sufocante, ganhando dimensão e extensão com o tratamento a três dimensões. As aranhas gigantes que habitam este espaço e que atacam a companhia provocam o primeiro grande momento de tensão do filme, revivendo aquela que Frodo encontrou em O Regresso do Rei no seu desafio com Shelob. Segue-se o Reino da Floresta liderado pelo elfo Thranduil e pelo seu filho Legolas. Este reino lembra aquele de Lothlórien, mas existe aqui uma aura negra que se espalha até aos seus habitantes e, em particular, até ao seu rei. Depois vem a Cidade do Lago e é provavelmente o melhor destes novos cenários, uma terra reminiscente de uma Veneza medieval, pobre e fúnebre, liderada por um tirano imbecil e ganancioso.

Se em O Hobbit: Uma Viagem Inesperada dava a ideia que a companhia de Bilbo nunca estava em verdadeiro perigo, passando por todos os obstáculos com relativa facilidade, essa sensação muda em A Desolação de Smaug. A noção de perigo está mais presente, aumentando o interesse do espectador pela missão de Thorin. A componente dramática é igualmente mais palpável, fortemente baseada nas personagens de Tauriel (criada exclusivamente para a adaptação cinematográfica) e Kili, cujos partilham uma improvável paixão, ainda que platónica nesta fase. A chegada da companhia a Erebor é outro momento em que o drama transparece. É impossível não sentir a emoção dos anões no regresso à sua casa-mãe. Mais do que a mudança no ritmo e no tom, são especialmente estes pequenos momentos que colocam O Hobbit: A Desolação de Smaug um patamar acima do seu antecessor. 

De todos, todavia, o grande momento, aquele que faz mais furor, pertence a Smaug, o dragão que fez de Erebor a sua casa. Smaug é um produto de design e efeitos especiais verdadeiramente impressionante; é a grande façanha desta produção, quiçá desta trilogia. É certamente o melhor dragão a sobressaltar o grande ecrã; é astuto, malicioso e traiçoeiro. Benedict Cumberbatch é tremendo a dar-lhe voz (e performance). Smaug rouba todas as cenas em que está presente; o seu diálogo com Bilbo é uma sequência intensa e notável, uma que, certamente difícil de conseguir, obtém de Martin Freeman a sua melhor prestação. Aliás, todo o elenco parece no topo do seu jogo quando Smaug entra em cena; Richard Armitage aprofunda a personalidade de Thorin, levantando no espectador questões sobre a hombridade do líder da companhia.

No plano técnico, O Hobbit: A Desolação de Smaug apresenta melhorias, mas alguns exageros e defeitos permanecem inalterados. Embora o CGI esteja mais elaborado e mesclado na magnífica fotografia, o seu uso excessivo, particularmente nas cenas envolvendo a incursão de Gandalf em Dol Guldur, retira fluidez, sobriedade e realismo à narrativa. A decisão de computorizar todas as estranhas criaturas não é afortunada; não se justifica a aplicação de CGI à maioria dos Orcs presentes ao longo do filme quando o método anterior e tradicional (de trajes e maquilhagens) funcionava tão optimamente. Este parecer ser o Pé de Aquiles de Peter Jackson e esta a sua adaptação da Terra-Média mais carregada de CGI. O realizador neozelandês abusa da boa vontade do espectador; os inúmeros fade-outs na parte inicial do filme, ainda que bem-intencionados, são um perfeito exemplo da sua cisma. Não obstante, com a sua câmara imparável e com os seus planos ilimitados, Peter Jackson produz cenas de acção enérgicas, vibrantes e deslumbrantes, nas quais se destacam a fuga em barris da companhia de Bilbo aos elfos e a insurreição contra Smaug no covil.     

As interpretações são boas e as novas personagens introduzem uma lufada de ar fresco. Evangeline Lilly justifica a inclusão de Tauriel com a fantástica criação de uma guerreira e rebelde elfa, tal como a justifica Orlando Bloom enquanto o regressado Legolas, agora mais arrogante e distante. Alguns dos anões têm oportunidade para se destacar, especialmente Kili de Aidan Turner. Ian McKellen não dispõe de muito tempo no ecrã, mas fascina em todas as suas cenas, mesmo que a produção à sua volta não se aproxime da qualidade da sua certamente difícil actuação. Nota ainda para a excelente banda sonora de Howard Shore, com novos temas e encantos, mesmo que a sua música não tenha a mesma utilização e manifestação que aquilo que propõe na versão em disco.

O Hobbit: A Desolação de Smaug acaba de forma súbita, em absoluto suspense, num ponto que deixará muita água na boca dos fãs, um ano de espera pelo último capítulo pela frente. Este segundo capítulo recupera efectivamente o passo e promete um final explosivo para a trilogia. Como um só, O Hobbit: A Desolação de Smaug não faz sentido; está dependente dos restantes para se legitimar. Como um meio, é um capítulo entusiasmante que reconquista a confiança daqueles que a tinham perdido, mais próximo da qualidade que O Senhor dos Anéis patenteou.     

CLASSIFICAÇÃO: 4 em 5 estrelas


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quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Filme: Oldboy - Velho Amigo (2013)

Sem ritmo, com baixos níveis de suspense e com Josh Brolin em baixo de forma, Oldboy – Velho Amigo é um remake sofrível que não trabalha as suas personagens e que desperdiça e torna incredível a história de origem.

Joe Doucett (Josh Brolin) é um pai alcoólico e irresponsável que provoca conflitos e mal-estar por todo o lado. Certo dia, durante uma das suas intensas bebedeiras, Joe desaparece. Joe acorda num quarto de hotel que lhe serve de prisão durante 20 anos, ao fim do qual é inesperadamente libertado. Com sede de vingança, Joe procura o responsável pelo seu cativeiro e pela morte da sua mulher, ao mesmo tempo que procura saber o que aconteceu com a sua filha. Mas o jogo e as razões do seu captor são maiores e mais antigas do que Joe imagina.

Oldboy – Velho Amigo, um remake do homónimo filme sul-coreano de 2003 de Park Chan-wook, que por sua vez se inspira na homónima manga japonesa, pouco faz para justificar a sua existência. Privado de suspense e sem uma exploração decente e sustentada da sua personagem principal, Oldboy – Velho Amigo, quando não se lança numa frenética rotação kill-billiana, mais parece uma das ocasionais investigações da série Casos Arquivados, um case-of-the-week que dispensa introduções à linha narrativa principal e que recorre a apresentações sucintas de enquadramento e de circunstância. Joe surge como uma personagem oca e indefinida, pontuada por momentos fugazes que apontam para um indivíduo problemático, pretensioso e irresponsável, sem qualquer consequência para a conotação moral de que este filme de Spike Lee necessita para fazer razão de si mesmo.

Joe é encarcerado sem ter decorrido o tempo necessário para a satisfatória assimilação dos traços da sua personalidade e é libertado do seu cativeiro sem ter decorrido o tempo suficiente para mostrar e comprovar as suas certamente inúmeras privações, aflições e reflexões. Vinte anos parecem passar por Joe num ápice, sem que ele mesmo se pareça dar conta disso. A alegada redenção que completa neste período é de passagem ainda mais efémera, reduzida a algumas linhas em voice-over das cartas que vai escrevendo para a sua filha. Por via de uma montagem desnecessariamente apressada, onde não escapam alguns notórios erros de continuidade, Joe nunca justifica perante o espectador toda a panóplia de características que apresenta quando se encontra finalmente livre. Que Joe experimente um qualquer não visto surto de absolvição e de retaliação durante o seu cativeiro não é de todo inaceitável, mas que se transforme subitamente num herói vingativo com poderes especiais é um salto de fé maior do que a reza das pernas.

A história de Oldboy – Velho Amigo, que é praticamente fiel ao original, embora o novo setting, não está em causa, antes a maneira amorfa e sem ritmo como Spike Lee a recicla no grande ecrã, desperdiçando sucessivamente conceitos e oportunidades de aperfeiçoamento. Spike Lee desbarata de tal forma a história que a torna algo ridícula e incredível. Não ajuda a sua realização a toada melodramática das suas abordagens tentativamente sérias, envolta na música descontextualizada, ainda que bonita, de Roque Baños; nem as performances sofríveis de Josh Broslin e Sharlto Copley. Josh Broslin aparece perdido e espalhado ao comprido no seu registo, enquanto Sharlto Copley, na tentativa de criar uma personagem estranha e memorável, cria uma personagem absurda. Samuel L. Jackson é igual a Samuel L. Jackson nos papéis menos convencionais: algo interessante, mas sem espaço para mais.          

Oldboy – Velho Amigo oferece alguns bons momentos de acção consequentes da sede de vingança e do carácter de justiceiro implacável de Joe. No global, contudo, este remake é um filme sofrível que resulta menos muito menos inteligente do que se julga e se apresenta. Certamente não se fundamenta perante o seu causador.
  
CLASSIFICAÇÃO: 1,5 em 5 estrelas


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segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Filme: A Vida de Adèle (2013)

A Vida de Adèle, do franco-tunisino Abdellatif Kechiche, é um extraordinário trabalho de exploração do carácter, da sexualidade e da transição da fase adolescente para a fase adulta, onde Adèle Exarchopoulos tem um desempenho memorável. Um dos filmes do ano. 

Adèle (Adèle Exarchopoulos), uma jovem estudante do liceu, começa a ter dúvidas sobre a sua sexualidade. Não querendo assumir aquilo que é, Adèle tenta manter as aparências, mas sem resultado. Um dia, Adèle conhece Emma (Léa Seydoux), uma artista plástica e gráfica com um misterioso cabelo azul, com quem inicia uma tórrida relação. A entrada de Adèle na vida adulta acarretará, todavia, problemas que Adèle não antecipa e que podem por em causa tudo aquilo que alcançou. 

Adaptado pelo realizador Abdellatif Kechiche do romance gráfico Le Bleu est une couleur chaude de Julie Maroh, A Vida de Adèle é um tour-de-force sobre o renascimento do Eu, onde a sexualidade, camada a camada, é decomposta na sua forma mais crua e primitiva para criar uma mensagem contundente sobre a escolha, ou incapacidade para ela. Neste olhar descomprometido, Adèle, que é introduzida ao espectador na recta final da sua adolescência, surge como um indivíduo tentativamente normal, à procura da normalidade e da maneira habitual de fazer as coisas. Começando a compreender que encarcera notórias diferenças em comparação com o seu grupo, Adèle ouve por alto as conversas das suas amigas sobre os rapazes do seu liceu e nada sente quando um deles mostra interesse por ela, interesse que chega a vias de facto para seu desconsolo e desconforto. Adèle percebe por fim que é diferente, mas, não sabendo como lidar com essa constatação, deprime-se e fecha-se sobre si mesma.  

Certa noite, Adèle deambula até um bar gay para testar o seu grau de integração. É nesse bar que Adèle volta a encontrar Emma, uma rapariga de cabelos azuis que lhe previamente chamara a atenção numa rua. Logo desde a primeira interlocução, Adèle e Emma entendem-se às mil maravilhas; Emma é o refúgio que Adèle precisa entre os dois mundos no qual tem um pé, mas nenhuma real presença. Adèle e Emma iniciam um romance tórrido que cresce para algo mais maduro e sólido. Adèle parece finalmente na expressão máxima da sua felicidade, sensação que Abdellatif Kechiche traduz excelsamente nos momentos que Adèle e Emma partilham num bonito e reservado jardim. O jardim podia perfeitamente ser o mundo dos sonhos de Adèle, porquanto ali tudo lhe parece possível. Todavia, Adèle rapidamente descobre que o seu novo mundo é tão igual ao seu anterior; os problemas são os mesmos e a conjugalidade homossexual enfrenta os mesmos desafios que qualquer outra relação.

Enquanto coming-of-age, A Vida de Adèle retrata sapientemente a viragem da vida adolescente para a vida adulta. Adèle, que se apresenta maioritariamente solitária, nunca consegue integrar-se completamente no meio adulto, nem tão-pouco no meio artístico e instruído de Emma onde os diálogos são cheios de interpretações ambíguas e intrincadas. Emma, por seu lado, não realiza o esforço para integrar Adèle neste meio, sugerindo até a Adèle que tente a escrita e abandone a educação de infância. Embora Adèle seja a musa para o trabalho de Emma, Emma nunca lhe dá o devido mérito, aceitando que Adèle se fica reduza a um inglório papel de dona de casa. Não obstante o relativo assumir da sua sexualidade, Adèle, que se sentira primeiramente isolada e prisioneira no liceu, volta a experimentar tais estados na companhia de Emma. Fica patente que o maior problema de Adèle nunca fora a sua sexualidade, mas a maneira como aparece desligada e desinteressada à frente das pessoas.    

Com o cabelo desgrenhado e o ar eternamente compenetrado, Adèle Exarchopoulos é perfeitamente genial no papel de Adèle. Este é um filme que se alimenta da sua performance e que se pinta com a sua frontalidade. Adèle carrega uma força emotiva rara no cinema, capaz de transmitir mil e uma sensações e pensamentos com mero recurso ao rosto e à gesticulação. É impressionante a forma como verdadeiramente enrubesce numa discussão, ou como as lágrimas e o ranho lhe descem com naturalidade num choro compulsivo. Poucos dirão que esta é mais actuação do que experimentação, ou que a força motriz por detrás da sua capacidade representativa seja meramente impulsiva: é-lo na realidade, provando-se dedicada e sentida. Adèle mostra-se confortável na sua pele e não faz passar mal-estar nas verdadeiramente explícitas cenas de sexo. Do outro lado, Léa Seydoux mostra-se bastante competente. Ainda que não brilhando tanto quanto Adèle, a prestação de Léa é forte e laudável, criando uma Emma com o seu encanto e charme, que se destaca muito para além do cabelo azul de saltar à vista.
   
Abdellatif Kechiche consegue um filme fenomenal e inspirado com A Vida de Adèle. A sua realização, embora a longa duração, nunca perde foco nem sentido das inúmeras mensagens que pretende reflectir (muitas mais do que uma única visualização permite descortinar), demorando o tempo que é necessário demorar para desenvolver camada a camada, fala a fala, as suas personagens e o rumo da sua narrativa. O tempo passa de forma imperceptível e, do nada, três horas decorrem como que num zás e Adèle transforma-se de uma jovem rapariga para uma jovem mulher. O mérito de Abdellatif Kechiche, mais do que na forma como a sua câmara acompanha Adèle ou como não se coíbe à crueza das cenas explícitas, reside na espontaneidade com que faz passar uma narrativa que, nas suas temáticas, é complexamente estratificada.   

A Vida de Adèle, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, é definitivamente um dos filmes do ano e um que ainda vai fazer correr muita tinta, tanto não seja pela maneira como termina a sua maratona e deixa em aberto a possibilidade de uma futura continuação.  

CLASSIFICAÇÃO: 5 em 5 estrelas


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